Carlinhos Brown solta o verbo em entrevista à Raça

Em nossa matéria de capa na Edição 183 entrevistamos o músico Carlinhos Brown. Confira trechos da entrevista

 

TEXTO: Maurício Pestana | FOTOS: Rafael Cusato | Adaptação web: David Pereira

Carlinhos Brown solta o verbo em entrevista à Raça | FOTO: Rafael Cusato

Carlinhos Brown solta o verbo em entrevista à Raça | FOTO: Rafael Cusato

 

O silêncio do lugar só é quebrado quando algumas crianças passam correndo atrás de pipas, com a alegria própria da idade. Para nos receber, uma das assessoras do astro pede que esperemos um pouco, até que Brown chegue ao local. Quando o percursionista, compositor, cantor e técnico do The Voice Brasil adentra o local, eletrizante e vibrante comosua música, a calma cessa. O furacão Brown chega agitando e já disparando falas e pensamentos, nos dando a tônica de como seria a entrevista. Invertendo os papéis, perguntou se gostaríamos de fazer as fotos primeiro, e sem titubear, ele mesmo respondeu: “Façamos tudo ao mesmo tempo, vamos conversando enquanto tiram as fotos”. Então demos início à entrevista, inspirados pela emoção de estar no lar de Brown e pelas crianças que corriam sorridentes. Perguntamos a ele se tinha saudade da Salvador de sua infânciae adolescência, sua resposta veio numa frase emblemática. “Tenho saudades do futuro que precisamos dar para essas crianças”. E continuou: “Eu nasci circundado de terreiros,nasci na Roça do Candeal. O Candeal surgiu entre um quilombo liberto e terras de negros que vieram recomprar suas irmãs, na época da escravidão. Eles diziam que não queriamver troncos ali, muito menos escravos. Essa área do Candeal fazia parte do tráfico escravagista, e dentro dessa história toda eu fui convivendo com essa Bahia, mas de uma forma muito pacífica, e depois eu fui vendo o bairro se modificar e se reestruturar a cada dia. Fui procurar saber por que contam essa história. É porque as mães de santo estavam reclamando tanto, que alguns babalorixás já não tinham mais fé no terreiro. Enfim, são coisas da minha infância.”

Confira trechos da entrevista com o músico Carlinhos Brown.

No seu primeiro disco “Alfagamabetizado”, você tinha uma explicação muito interessante para falar do que é ser alfabetizado. Você considera a educação formal um dos grandes desafios do Brasil?

O ser alfagamabetizado é aquele cara que não frequentou a escola, mas nem por isso perdeu o estímulo de aprender. O tempo de aprender de cada um varia, claro que se você tem umaformação básica, se você sabe ler, tudo fica mais fácil. Mas não se pode ter vergonha de pedir auxílio, pedir ajuda aos filhos que estão na escola. Sem isso, as coisas são muito mais difíceis, muito duras. A minha avó não sabia ler, ela não seria capaz de pegar umônibus hoje. O “Alfagamabetizado” mostrava que estava contra a corrente de toda uma cadeia. Muitas vezes soa arrogante, mas eu sou poeta. Sentir não tem nada a ver com poesia, arrumar letras não tem nada a ver com poesia. A poesia não tem que vir de ambiente acadêmico, quando você expõe isso, mata no outro a possibilidade de se expressar com a sua letra, que é o que Itamar Assunção já cobrava na música dele.

Quem inspirou e lhe inspira até hoje a fazer essa música diferenciada que tem caracterizado sua obra?

Começou com negros fortes que eram muito respeitados na comunidade: Simonal e Agnaldo Timóteo. Inclusive essa coisa minha de usar óculos foi imitando o Timóteo, porque aqui tinha um cara chamado Reite que cantava e imitava ele, era parecido e tinha o cabelo curtinho igual. Um dia ele chegou para mim e disse: “Você está indo bem nesse negócio de artista, só falta um óculos, faça igual Timóteo”. E eu passei a usar os óculos. NoItamar, sempre admirei aquele jeito autêntico dele. Ele era a cara dos negros do Brasil, sobretudo dos nordestinos, que muitas vezes queriam vestir capas, mas não entendiam que em São Paulo faz mais frio que aqui. Adorava aquele estilo dele, porque era contemporâneo a sua época, ele era tipo o Boosty Collins, do Funkadelic, ou Sly & The Family Stone. Tinha um comportamento em comum com esses grupos, que estavam estourando no mundo todo, era o que se ouvia, apesar de que tinha muita gente na época que não entendia a discoteca e não percebia como aquilo era bom, houve até protesto contra a disco music.

Por falar em protestos, o que você achou das últimas manifestações que tomaram as ruas e pararam o país?

Poxa, do que essa galera está reclamando? Tem asfalto, tem ônibus, tem coisas na rua que eu nunca vi ter. No meu tempo era status ter uma latrina na frente da porta, porque opessoal mais pobre fazia as necessidades em pinico e jogava no mato. Uns jogavam no telhado dos vizinhos, era uma desordem, não havia saneamento. Isso porque eu nem falei depassar fome… Passar fome é uma das situações mais árduas e duras, e acho que todo mundo deveria tentar, um dia, sentir fome por algumas horas, para poder compreender. Até mesmo pessoas violentas, se nunca passaram por isso, não têm uma compreensão real do mundo. Ser violento de barriga cheia é fácil.

“Passar fome é uma das situações mais árduas e duras, e acho que todo mundo deveria tentar,  um dia, sentir fome por algumas horas, para poder compreender” | FOTO: Rafael Cusato

“Passar fome é uma das situações mais árduas e duras, e acho que todo mundo deveria tentar, um dia, sentir fome por algumas horas, para poder compreender” | FOTO: Rafael Cusato

 

Então qual o motivo destas manifestações, no seu ponto de vista?

A individualidade chegou a tal ponto que está levando uma pátria junto. Perdemos a coletividade, tudo o que se fala na internet se acredita, e o pior, o que eu acho mais insano é que a internet, que é um objeto maravilhoso de comunicação, vende os nossos conteúdos e negocia entre nós mesmos. Steve Jobs deu a frase “eu fiz uma coisa aqui para salvar a música”, na verdade esse cara acabou com a música, é isso que as pessoas têm que dizer. É gênio? Sim, mas não encontroucaminhos óbvios e claros para que as pessoas respeitassem o direito dos outros.

Outro problema da sociedade é a intolerância religiosa. Como você lida com isso?

Hoje tem uma discussão enorme entre as questões religiosas, entre terreiro e os crentes; Martin Luther King era os dois, ou mais, porque ele também era mulçumano, crente, candomblé, era tudo. Nós negros somos místicos e temos que nos respeitar. Não adianta eu ser negro e falar mal do terreiro. Deus se revela para cada um de uma forma, em um determinado dia ou tempo, e se a sua espiritualidade quiser mudar, ela pode, pois você não a controla, ela é quem te lidera. É hora de acabar com essas discussões nas comunidades, vamos viver o que há para viver.

O que você acha do Brasil atual?

O Brasil é um país brilhante e que precisa ser visto dessa forma. E a Bahia é um lugar que só precisa ter mais autoconfiança. Aqui fomos formatados para sermos pessoas apaziguadoras, dizem que é só humildade, mas eu sei que não é isso. O país começou aqui! Nós temos um acervo histórico gigantesco, os grandes artistas carnavalescos em sua grandemaioria estão aqui, nós temos uma história enorme, com o tropicalismo e tudo.

Quer ver essa e outras entrevistas e reportagens da revista? Compre essa edição número 183.

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