Magia Negra

Neste artigo quero fazer uma distinção entre três tipos de violências que negras e negros enfrentam no Brasil e em todos os países de populações africanas e que herdamos da relação negros e brancos em contato escravista desde o século 15. A primeira é a violência militar, a segunda é a violência econômica e a terceira a violência epistêmica. Cada uma dessas violências – militar, econômica e epistêmica – traz consigo exigências de justiça.  Vou dizer que a justiça em relação aos dois primeiros que provavelmente passamos a maior parte do nosso tempo focado e são os dois primeiros que animam a maior parte do nosso discurso político e discurso de oposição ao status quo.

A violência econômica de que muitos de nós estamos familiarizados e profundamente incomodados – é a razão pela qual somos um das dez maiores economias do planeta e temos uma das maiores desigualdades no mundo e a pobreza racializada para afrodescendentes e indígenas. Se a justiça política “resolveu” em tese a questão da cidadania, sabemos que não resolveu a questão da justiça econômica. E também podemos concordar que foi, e é essa violência econômica que impulsiona a maior parte da discussão sobre a transformação do sistema educacional, que se concentra no acesso para aqueles anteriormente excluídos.

A terceira violência, a violência epistêmica, é talvez a mais difícil de enfrentar. Isso é talvez porque é tão invisível, tão naturalizada, tão parte da vida comum e diária de que é difícil falar. E no entanto é a mais importante das três violências. Você tem que ter um conceito do que é ser humano primeiro, a fim de reconhecer erroneamente outro ser visto como propriedade ou escravo. A violência epistêmica é sobre o pensamento e os efeitos simbólicos, religiosos, políticos e econômicos desse pensamento. A história da jornada dos seres humanos rumo à liberdade, não nos esqueçamos, é também a história de luta contra a escravidão, colonialismo, racismo e do patriarcado.

A violência epistêmica está em plena medula de tudo o que pensamos ser bom em relação à nossa modernidade, seus conceitos e suas realizações. Se há engajamento na luta pela transformação política e econômica pergunto onde estão os nossos estudantes e professores negros, a luta contra a violência epistêmica? E acrescento: o que estamos ensinando e pesquisando e como estamos fazendo isso e porquê estamos fazendo isso?

A ciência, tecnologia e inovação são campos do conhecimento utilizados, na compreensão e manejo do ambiente que nos cerca, podemos depreender que todos os povos, em seus mais remotos momentos históricos, foram dotados de conhecimento científico e tecnológico para atender aos níveis de complexidade de suas sociedades. O desenvolvimento das nações nessas áreas do conhecimento deve-se, principalmente, às particularidades dos seus processos históricos e culturais. Isso não está relacionado com maior ou menor grau de inteligência ou aptidão de certos agrupamentos humanos. É interessante enfatizar essa questão para dissiparmos teorias racistas a respeito da suposta inferioridade de africanos em relação aos europeus no que se refere à capacidade cognitiva para empreender o desenvolvimento em suas sociedades. A população negra e indígena foram vistos neste período (séculos 15 até o 20) descendentes de Cã, amaldiçoados por Noé, intelectualmente, emocionalmente e geneticamente inferiores, além de serem culturalmente limitados. O colonialismo científico – o processo envolvendo o controle político do conhecimento foi e é realizado por um ato deliberado e sofisticado de falsificar a produção de informações e ideias num processo de opressão cultural.

No ano de 1758, o botânico sueco Carolus Linnaeus – o responsável pela criação do atual sistema de classificação dos seres vivos – deu à humanidade o nome científico de Homo sapiens e a classificou em quatro subespécies: os vermelhos americanos, “geniosos, despreocupados e livres”; os amarelos asiáticos, “severos e ambiciosos”; os negros africanos, “ardilosos e irrefletidos”, e os brancos europeus, evidentemente, como “ativos e inteligentes.” Em 1855 Arthur Gobineau escreveu o Ensaio Sobre a Desigualdade da Raça Humana que defende que a miscigenação é a causa da decadência das nações.

O termo eurocentrismo é usado no sentido de mundialização da cultura europeia; elevá-la acima das demais culturas, utilizando termos civilizatórios próprios do padrão europeu como deus, leis, justiça e ciência. Principalmente na parte introdutória do livro Filosofia da História, tais ideias são claramente apresentadas. Sobre os nativos-americanos ou povos originários, diz o filósofo branco Hegel:

Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo (branco nascido na colônia), e ainda mais perante um europeu, são as principais características dos americanos do sul, e ainda custará muito até que europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de reconhecer. (1995, p. 74-75) [2].

Ainda na parte introdutória da obra, no Fundamento Geográfico da História Universal, eis as considerações do autor sobre os negros africanos, bem como os porquês da historicidade universal não se aplicar a eles.

A principal característica dos negros é que sua consciência não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com sua própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência. (…) O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia de caráter humano. (…) Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato, inexistente. (…) Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar. (HEGEL, 1995, p. 84-88).

Mapa parcial com 25 reinos africanos antes da invasão europeia

 

No Brasil o médico Raimundo Nina Rodrigues considerava, por exemplo, que os rituais de candomblé eram uma patologia dos negros. Esses trabalhos acadêmicos que hoje chamamos de racismo científico [3], demonstram o papel social da ciência, enquanto instrumento de legitimação de políticas racistas que ajudaram a consolidar uma sociedade que cultua uma hierarquização racial e que, no Brasil, adicionado à teoria da democracia racial de Gilberto Freyre, contribuiu para a manutenção do atual quadro de desigualdades étnicorraciais. O lusotropicalismo de Freyre também foi utilizado por Portugal para que as antigas colônias africanas (ou províncias ultramarinas) continuassem a estarem dependentes do império português no século 20. Apesar dessas teorias terem perdido suas validades científicas, elas continuam tendo um fortíssimo efeito no modo de pensar da sociedade, a ponto de criar modelos mentais que identificam os negros e índios como seres “inferiores e descendente de selvagens.” Ao discutirmos a matriz dos povos africanos para o conhecimento científico e tecnológico, faremos uma exposição em torno de algumas das principais conquistas científicas e tecnológicas dos africanos e divulgaremos alguns dos trabalhos desenvolvidos por pesquisadores que promoveram uma valiosíssima reconstituição científica da história do continente africano e da sexta região africana mais conhecida como diáspora. Desejo dar minha contribuição, pelo menos no campo da pesquisa, para democratizar conhecimentos que ajudem na reflexão a respeito da importância dos povos africanos e da diáspora no contexto do desenvolvimento científico e tecnológico, entendendo que isso será fundamental para que as próprias e os próprios passem a ter uma imagem positiva e mais verdadeira sobre si, se descolonizando de séculos de agressão psicológica, pois atacar a mente do inimigo (nós) foi um elemento importante da estratégia militar de controle total.

 

Carlos Machado/ Gyasi Kweisi

Historiador e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo Professor da SME-PMSP, Autor do livro Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente. É ex-bolsista da Ford Foundation (USA), articulista e palestrante.

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