Mulher denuncia tentativa de sequestro de sua filha e racismo em posto da BR-381

Na foto, Jamille posa ao lado do marido Roberto com M. no colo. Mulher viajava para BH depois de visitar companheiro (foto: Arquivo pessoal/ facebook )

Eu me vi perdendo a minha filha simplesmente por ser negra e ela não”, disse Jamille Edaes, de 22 anos, ao denunciar ter sido vítima de racismo ao mesmo tempo em que uma mulher tentava roubar-lhe o bebê em uma parada de ônibus na BR-381 em Perdões, no Centro-Oeste de Minas, na noite de segunda-feira. Jamille, que é negra, contou ter sido acusada por funcionários do estabelecimento de ser “sequestradora” da própria filha, de 1 ano e 5 meses, que tem a pele branca. Só não a perdeu porque levava todos os seus documentos na bolsa e ainda um vídeo do parto no celular. Ela registrou ontem um boletim de ocorrência sobre o episódio “desesperador”. Segundo a Polícia Civil, o caso será investigado pela Delegacia de Rio Vermelho, próxima de onde ocorreu o crime, e o teor do depoimento da vítima não será divulgado.

 De acordo com a Jamille, ela passou o fim de semana com o marido, que mora na capital paulista, e embarcou para retornar a Belo Horizonte na noite de segunda-feira. Após quatro horas de viagem, o ônibus parou em Perdões e ela desceu com o bebê para lanchar. “Foi então que entrei no banheiro e uma moça deu a mão para a minha filha e começou a brincar. M. é uma criança muita tranquila, todo mundo brinca com ela e não me importei. Mas, de repente, a mulher começou a gritar: ‘Essa filha é minha!’”, contou a vítima. Assustada, ela pegou a menina no colo.

Foi naquele momento, sustenta Jamille, que uma faxineira da lanchonete perguntou à outra mulher, que tem cerca de 30 anos: “Essa preta aí pegou sua filha?” “Foi quando todos questionaram se eu era mesmo mãe da criança”, afirma Jamille. Ela conta que a mulher que tentou sequestrar M. tinha em mãos uma certidão de nascimento de uma menina chamada Jéssica, que teria 1 ano e 8 meses. Nesse momento, relata, a mulher continuou a gritar que M. era filha dela e acusou Jamille de sequestradora. “A faxineira puxou M. do meu colo e a entregou para a mulher. Ela disse que M. jamais poderia ser minha filha porque ela é branca e eu sou negra”, afirmou. Segundo Jamille, outros três funcionários da lanchonete – duas mulheres e um homem – ajudaram a arrancá-la do seu colo. A mulher teria chegado a colocar a criança dentro do carro e a posicionado em uma cadeirinha de bebê.

“Eu fiquei muito apavorada e não sabia como provar o contrário. O motorista do ônibus me perguntou como eu havia conseguido embarcar com ela e me lembrei que o RG e o CPF estavam em minha bolsa”, contou Jamille. Segundo Jamille, foi preciso mostrar para várias pessoas todos os documentos, além de um vídeo do parto que estava no seu celular para provar que a criança é sua filha e conseguir que a ajudassem a resgatá-la. Ela diz que tentou registrar uma ocorrência imediatamente e denunciar a discriminação racial e a tentativa de sequestro. “Quando todos acreditaram em mim, o motorista disse que não poderia me esperar. Estava tão apavorada e com medo que fui embora”, contou. Ao tentar registrar a ocorrência na rodoviária, mais um problema. “Eles (policiais) zombaram de mim e disseram que era impossível sem os dados da mulher. Eu não tinha nem o nome dela”. A ocorrência só foi finalmente registrada na Delegacia da Mulher de Betim.

O marido de Jamille, Roberto Edaes, de 25, diz que o caso expõe o racismo que há no país. “Infelizmente não será a primeira vez nem a última que ocorrerá esse tipo de situação. Aquelas histórias absurdas que nossos pais nos contam acontecem de verdade. Como dizia Renato Russo, vivemos em um mundo doente”, diz.

Ele considera inclusive que as pessoas podem ter agido dessa forma porque se tratava de uma mulher. “Se fosse com um homem negro e a filha branca também haveria esse mesmo questionamento? Precisamos debater isso, precisamos ficar atentos”, completou.

ESTRUTURAL “A suspeita da maternidade é apenas um fragmento das recorrentes cenas de racismo e discriminação racial que ocorrem cotidianamente no Brasil. Os últimos censos apontam que os casamentos interraciais, por exemplo, entre negros (autodeclarados pretos e pardos) e brancos não são tão comuns quanto nos parece. Herança do racismo, negros e negras quando têm filhos e filhas fenotipicamente brancos são tratados como ‘cuidadores e cuidadoras’ dessas preciosidades”, afirma Aline Neves, militante negra, professora da Educação Básica e Pesquisadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG. “Na escola, no restaurante, no parquinho, em inúmeros lugares, estará a mulher negra colocada em suspeita”, diz.

Para a especialista, o ocorrido com Jamille Edaes apresenta dois fragmentos de sofrimento para a mulher: o risco de se perder um filho e a ofensa racial, devido a difenreça genética entre amabas. “Não é difícil imaginar o medo de nome da vítima diante do risco de ter a filha roubada. Entre os dois corpos em luta pelo direito da criança, e a fragilidade do discurso de uma mulher negra, cuja filha não tem o mesmo fenótipo que o dela, está o racismo para definição da maternidade. Como pode uma mulher negra ter uma filha branca? O imaginário não nos permite aproximações, pois até mesmo a beleza é hierarquizada, os sentimentos são hierarquizados e tudo segue a favor desta mulher branca. A humilhação em ter que provar a que filha é sua, nome da vítima, é semelhante aqueles que têm seus filhos apartados de si pelo fato da vulnerabilidade, em especial em Belo Horizonte – mães órfãs.”

Segundo o cientista-social Robson Sávio, integrante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é preciso uma investigação apurada, atenta aos perigos da rodovia. “É preciso analisar se trata-se de uma situação pontual ou se essa mulher que teria tentando sequestrar a criança faz parte de uma quadrilha.  Outra opção é que ela tenha princípios fascistas, que acredite  na supremacia branca e ache que tirar aquela criança de um berço negro seria um ‘favor’ para ela”, disse.
Ele pondera que as estradas se tornam locais propícios para esse tipo de crime, devido à falta de articulação entre policias. “Falta uma articulação entre as polícias Federal, estaduais e rodoviárias militares. Além do tráfico de pessoas, o de drogas e o de armas são constantes”, afirma. E mais: Todas as dificuldades enfrentadas pela vítima para conseguir registrar um boletim de ocorrência também desencorajam as pessoas a fazer o mesmo, comenta.

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