O Direito de discutir o racismo é apenas do negro!

Aos 9 anos de idade, a então menina Luislinda Valois passou por uma situação muito difícil na escola. Um professor havia pedido aos alunos esquadros de plástico para a realização de um trabalho. O pai da menina só pôde comprar um de madeira. O professor, irritado, a mandou ir para “a casa da branca, que deixasse de estudar e que lá fizesse uma feijoada”. A vergonha da ocasião foi um estímulo para que Luislinda estudasse ainda mais para quando estivesse formada, voltasse e prendesse o professor racista. Era a sua primeira sentença! Hoje, a juíza baiana Luislinda Valois já soma excelentes trabalhos prestados à população – principalmente a mais carente – e 25 anos de profissão, tempo mais que suficiente para ser desembargadora, mas… “No judiciário a porta não é nem fechada, ela é lacrada. Eu, por algum motivo tive condições de chegar, mas percebo que existe uma certa rejeição, não à minha pessoa, mas ao problema do negro”, relata esta mulher de poder,  autora do livro O negro no século XXI. E ela não para por aí…

Dá para afirmar que existe discriminação no meio judiciário?
Não somente no meio judiciário! Eu sinto discriminação a todo instante e em todos os meios, é que nem sempre a gente pode e tem a oportunidade de falar. Somente agora que eu estou tendo  essa chance de levar ao conhecimento público as situações que o negro passa, principalmente aqui na Bahia onde a discriminação e o racismo são bem mais acentuados do que nos demais estados da federação.

 

Pelo tempo de profissão (25 anos) era para a senhora ser desembargadora. O negro tem mais dificuldades na promoção também na Justiça brasileira?
Não restam dúvidas, no judiciário a porta não é nem fechada, ela é lacrada. Eu, por algum motivo tive condições de chegar, mas percebo que existe uma certa rejeição, não à minha pessoa, mas ao problema do negro. Porque nós temos aqui 35 desembargadores e apenas 1 é negro. Todos sabem que existem outros magistrados não negros que chegaram à magistratura bem depo de mim e que já são desembargadores. Outros chegaram à capital no  ano passado e já foram convocados para o Tribunal de Justiça da Bahia. E eu, sequer fui convocada, para substituir alguém.
E tenho 25 anos de serviço!

 

Acredita que na Bahia é mais difícil para o negro entrar nessas áreas quase que blindadas na sociedade brasileira?
Com certeza, inclusive não somente no judiciário, no legislativo ou no executivo, mas nas empresas privadas também. Se você observar vai ver que no Polo de Camaçari existem muitas multinacionais, mas a maioria dos negros que trabalham lá estão em trabalhos minúsculos, inferiores, geralmente como comandados, como subalternos, jamais como altos executivos ou comandantes.

 

Pesquisas nos Estados Unidos revelam que a chance de um réu negro ser condenado é infinitamente maior do que um branco. Aqui no Brasil esses dados se assemelham?
Esses dados são mais graves, bem maiores, bem acentuados aqui no Brasil. Tive a oportunidade de ir em alguns presídios na Bahia e constatei: só existem jovens de 19 a 25 anos de idade e negros. É como se estivessem lá pedindo socorro e, mesmo que eles não tenham culpa formada, já estão ali condenados à morte de qualquer forma, porque estão condenados à morte realmente ou por falta de oportunidade. Mesmo que cumpram a pena, não vão ter a oportunidade de se reintegrarem à sociedade como desejamos.

path - Luislinda Valois _O Negro no Século XXI cred. Acrísio Siqueira

 

Aspectos históricos, sociais e raciais devem ser levados em conta pelo juiz quando o réu é negro?
Não. Acredito que a lei deve ser aplicada sem importar a raça, a situação social ou econômica. Agora o que observamos é que sempre o negro é condenado. Eu digo sempre que se não tiver a quem condenar, condena-se o negro, mesmo que ele ainda esteja na barriga da mãe.

 

Como o Judiciário pode melhorar a atuação nos casos raciais?
Com um maior número de julgadores negros. Nós sabemos o que os nossos irmãos de raça sofrem, porém, isso não basta. É necessária uma maior divulgação do que o negro passa, porque se esconde muito o racismo existente e a discriminação. Isso precisa aflorar para que os magistrados conheçam a realidade do negro no Brasil. Parece que somos iguais, mas só somos iguais na constituição brasileira e nas constituições estaduais. Mas no dia-a-dia, nos cargos e nas oportunidades não somos iguais a ninguém, só somos iguais aos leigos, única e exclusivamente.

 

O que te motivou a entrar para a magistratura?
Aos 9 anos passei por uma situação muito difícil, que se fosse outra pessoa teria parado por ali e aceitado a proposta como de grande valia. Um professor pediu para fazer um trabalho escolar e precisava ser feito em esquadro de plástico. Meu pai comprou um de madeira e quando levei à escola, o professor disse que não foi aquele material que ele havia pedido. Então, respondi a ele: “Mas esse foi o material que o meu pai pôde comprar…” E ele me respondeu: “Se seu pai não pôde comprar o seu material de desenho, vá para a casa da branca, deixe de estudar e lá vá fazer uma feijoada…” Saí correndo da sala morta de vergonha, fiquei pelo pátio, depois voltei e disse ao professor: “Não vou fazer feijoada na casa da branca. Vou ser juíza e volto aqui para te prender…” A partir daquele dia coloquei na minha mente que aquilo não era nada de ruim para mim, era um estímulo para eu estudar mais, mais e mais. Na minha cabeça eu tinha que voltar para dizer a ele que eu era juíza e prendê-lo.

 

Há mais de duas décadas o racismo é crime inafiançável no Brasil, mas não tem ninguém preso por isso. A lei é muito dura ou a justiça é muito branda nos casos raciais?
Repito: faltam juizes negros para ver que o racismo realmente está arraigado nas pessoas! Quem não é negro não sentiu na pele, não passou pelo que nós passamos. Eu digo que para as pessoas saberem o que é ser negro no Brasil basta “ficar negro por 48 horas”, se for possível. Claro que isso não é possível, então acredito sempre que as sentenças colocam o autor do crime de racismo numa situação mais branda, não como crime inafiançável. Daqui a pouco teremos essa oportunidade, até porque os negros estão levantando com sua competência e sua capacidade, dizendo: “Olha, nós estamos aqui, não se mede as pessoas pela raça, então deixem-nos em paz, queremos viver com nossos direitos assegurados, garantidos e reconhecidos”. O direito a discutir o racismo é apenas do negro.

 

Certa vez fiz um cartum onde um advogado chega na corte e pergunta para uma mulher negra: “Onde está o juiz?”. Já passou por situação semelhante?
Em determinado dia cheguei cedo, pois meu pai sempre me ensinou que horário existe para ser cumprido, então chego antes da audiência, do horário de expediente. Sentei na secretaria e comecei a ajudar o pessoal a juntar os documentos e os processos. Entrou uma advogada loira e disse: “O juiz vem hoje?”. Sinalizei para uma das funcionárias não dizer nada. Aí a advogada disse que o juiz não chegava e começou a criticar… E eu esperando ali, quando deu o horário da audiência, coloquei a toga e aguardei, mandei fazer o pregão. Quando a advogada chegou e me viu – negra e de cabelo rastafari. E ela, tendo feito aquelas colocações que havia feito anteriormente, ficou perdida. Tive pena da moça e disse a ela: “Doutora, a senhora está um pouco nervosa e tensa. Esperava aqui um juiz e, se fosse uma juíza, não seria uma negra com o cabelo rastafari vermelho”. Ela negou e eu marquei a audiência para o dia seguinte com a aprovação da parte contrária.

 

Aconteceram mais casos como este?
Vários!  Recentemente cheguei ao juizado para trabalhar e em minha cadeira – digo a minha cadeira, pois eu sou a juíza de lá no momento – estava sentada uma advogada, loira por sinal. Disse a ela para me ceder o lugar que eu precisava trabalhar. Aí ela respondeu: “Não senhora, esta cadeira é do juiz”. Eu disse: “Esta cadeira é do juiz, mas neste momento ela é da juíza. E a juíza sou eu”. A advogada em questão ficou me olhando, duvidando que eu fosse a juíza e continuou sentada. Pediu um “minutinho” e eu disse que não tinha um, porque não existe diminutivo de minuto. Pedi, por favor, para ela se levantar, pois eu precisava trabalhar e era a juíza. Ela ainda ficou meio perdida, sem saber se levantava da cadeira ou não. Aí falei: “Se a senhora não se levantar vou chamar o oficial que está lá fora”. Ela começou a olhar para o meu cabelo e esqueceu de se levantar. Me aproximei, encostei na cadeira e fiquei esperando. A advogada ficou com vergonha e após esse impacto todo, desnecessário, é que se levantou e eu sentei.

 

A maioria desses casos foi em seu ambiente de trabalho?
Um deles foi no avião. Eu de férias e disseram que o voo não sairia. Perguntei o motivo e me disseram que eu estava sentada no lugar de um militar. Eu disse que comprei a minha passagem com o meu dinheiro, que não foi uma doação. Pediram para que eu me identificasse, quando mostrei a carteira pediram desculpas, ofereceram refrigerante, café. Eu disse que nunca mais iria viajar por aquela empresa.
São essas situações que passamos a todo instante como magistrada! Outra vez foi com o meu filho que é promotor de justiça do Estado de Sergipe. Compramos uma caminhonete e fomos abordados na estrada. Pensaram que éramos assaltantes porque estávamos com a caminhonete 0 km, ainda sem placa.  Fomos parar no posto policial. Uma situação muito constrangedora: presumiram que dois negros dentro de uma caminhonete cabine dupla eram assaltantes. Tem outras situações, mas que eu até prefiro esquecer.

 

Fale um pouco sobre a justiça itinerante, um projeto inovador que serviu de exemplo para outras partes do país.
Esse projeto foi o seguinte: eu era coordenadora do juizado e cheguei em Brasília para participar de um encontro e percebi que poderia criar projetos para levar a justiça célere para as comunidades mais distantes das capitais. De pronto consegui uma verba, não o dinheiro em espécie. Assinei o primeiro  projeto terrestre que denominamos de Justiça bairro a bairro. Depois, voltando a Brasília já existia uma verba para outro projeto que é o Balcão Justiça e Cidadania. Não perdi tempo, é bom aproveitar as oportunidades. Quando voltei à Bahia conversei com o então presidente do Tribunal e ele disse: “Faça o projeto e vamos aproveitar”. Nós fizemos, o lançamento foi maravilhoso e o pessoal de Direito e Planejamento do Tribunal me ajudou muito. Nós implantamos para também desafogar um pouco a Justiça que está cheia de processos que não se resolvem, pois o número de juízes é pequeno e a demanda, depois da constituição de 1988, ficou muito grande. Por meio dos balcões de Justiça e Cidadania se leva todo o tipo de serviço para o cidadão: carteira de identidade, exame médico… Até tirar fotografia eu consegui, ensinar como se alimentar, se vestir. Não se vestir no sentido amplo, mas sem gastar muito, com elegância, corte de cabelo. E também técnicas de mediação de conflitos e a solução desses conflitos.

 

Este projeto também foi levado para o interior?
Implantei aqui na Bahia e, depois que passei a ser coordenadora deste Balcão de Justiça e Cidadania, levei para o interior, principalmente no baixo sul, com a colaboração do Dr. Norberto Odebrecht, que foi um grande amigo de meu pai. Ele disse que me ajudaria neste sentido e quando cheguei lá descobri umas comunidades quilombolas. Para mim foi fantástico e ainda criei dentro destes balcões de Justiça e Cidadania o Balcão Itinerante no baixo sul, onde nos deslocávamos através de canoas e barcos para chegar nas comunidades quilombolas, porque como você deve saber são comunidades bem distantes, longe de tudo e de todos. Criei este projeto, instalei e hoje ele está  em diversos lugares. Graças a Deus tem tanto êxito que está sendo copiado.

 

O que precisamos fazer para mudar, diminuir e enfrentar a discriminação?
Sem dúvida o Brasil tem tido um prejuízo muito grande perdendo verdadeiros gênios só porque são negros. Eles não são bem acolhidos aqui, vão embora e quando chegam lá fora eles fluem e não retornam. O prejuízo é sempre nosso, não é do físico do Brasil, mas enquanto população! Nós precisamos conscientizar de que todos somos iguais, todos nós pagamos impostos e que nós temos nossos direitos.

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