Símbolo da resistência negra

O baobá, árvore cheia de significados, é o símbolo da resistência negra. É sobre isso que o colunista Oswaldo Faustino escreve. Confira

 

TEXTO: Oswaldo Faustino | FOTOS: commons.wikimedia.org | Adaptação web: David Pereira

A árvore Baobá | FOTO: commons.wikimedia.org

A árvore Baobá | FOTO: commons.wikimedia.org

Para o escritor Antoine de Saint-Exupéry, em seu Pequeno Príncipe, livro de cabeceira de várias gerações – com mais de 230 traduções em todo mundo –, o baobá representava um grande perigo, quer pelas dimensões que atinge, quer pelas raízes que tanto se aprofundam quanto se espalham. O pequenino protagonista da obra passa um capítulo inteiro empenhado em destruir todas as suas “terríveis” e “más” sementes que infestam o solo de seu planetinha. Eu era criança quando esse livro caiu em minhas mãos e o tal baobá diabolizado pelo simpático e loiro herói, com quem eu havia aprendido que “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, enraizou-se em meu imaginário como um símbolo de terror, de destruição, cuja semente deve ser extirpada a qualquer custo.

Diz a lenda que antes de serem embarcados nos navios negreiros, os escravizados africanos, sob chibatadas, eram obrigados a dar dezenas de voltas em torno de um imenso baobá – também chamado de embondeiro, em alguns países –, enquanto negavam seus nomes, suas crenças, suas origens, seu território, enfim, sua essência, para em seguida serem batizados com uma identidade cristã-ocidental e enviados para o cativeiro. Por isso, o baobá passou a ser chamado de a “árvore do esquecimento”, afinal, os “esquecidos” teriam deixado depositadas alí, no tal baobá, suas verdadeiras identidades e memórias. Outros autores, alguns pensadores, cientistas e vários políticos, ao longo de nossa história, também têm se empenhado em alardear o quanto é fundamental a extinção das sementes e raízes africanas para o sucesso do modelo de sociedade que se impôs ao nosso País, cuja terra fértil “em se plantando, tudo dá”.

Que árvore é essa, afinal?

Leitura indispensável para todas as crianças e adultos, A Semente que Veio da África, de minha amiga antropóloga social Heloisa Pires Lima e seus parceiros, o costa-marfiense Georges Gneka e o moçambicano Mário Lemos, me fizeram refletir sobre o que realmente está por trás desses temores. A árvore se chama cientificamente de Adansonia – encontrada em oito espécies –, símbolo de Madagascar e emblema nacional do Senegal, com forte carga cultural em vários países africanos. Não à toa, recebe também o nome de “árvore da vida”. Com seus frutos, a mukua, riquíssimos em vitaminas e sais minerais, e a grande quantidade de água guardada em seu tronco, alimenta e sacia a sede de um número grande de pessoas. Ela vive cerca de 6 mil anos e é considerada um elo de ligação entre os povos, seus ancestrais e suas divindades. Aos seus pés, em países como o Mali, são sepultados os griots, guardiões e propagadores das histórias de seu povo, para que suas memórias fiquem ali depositadas.

“A sabedoria é como o tronco de um embondeiro. Uma pessoa sozinha não consegue abraçá-lo”, diz um provérbio de Moçambique. Talvez seja essa sabedoria africana e o que ela representa que assustam tanto aqueles que se desesperam diante da possibilidade da disseminação dessas sementes e raízes. Sequestrados e trazidos à força para as Américas, os sobreviventes do banzo construíram com sua força de trabalho, mas também com seus saberes, as riquezas das nações para as quais a diáspora os levou. Em minhas reflexões, concluí que cada um desses africanos e de seus descendentes transformou-se numa semente de baobá. O interessante é que, a partir do momento em que nos debruçamos sobre essas reflexões, nada mais consegue nos deter. Eu concluí meu conto intitulado “Uma Sede de Beber o Mar” com o seguinte pensamento: “… ao pé do baobá, você jamais se sente saciado. Sempre querer mais, muito mais”.

A multiplicação dos baobás

Desde o ano 2000, na Vila Matilde, zona leste da capital paulista, essa árvore floresce, em forma de sonoridades, danças e outros tipos de manifestações culturais afrobrasileiras. Trata-se do Coral Baobá, formado por crianças e adolescentes de origens étnicas diversas, fomentado por uma associação fundada por um grupo de artistas, educadoras, intelectuais e empresárias. Através da preparação vocal e corporal, da contação de histórias e de outras práticas, são transmitidos conhecimentos e exercitadas vivências de africanidade. Durante o recente lançamento do documentário Raça, de Joelzito Araújo e Megan Mylan, o público foi informado de que a totalidade da renda de exibição desse filme será doada ao Fundo Baobá para Equidade Racial, uma organização sem fins lucrativos que visa mobilizar pessoas e recursos em apoio a projetos de organizações afro-brasileiras que objetivem a equidade racial. Criado em 2011 como uma das estratégias de saída do país da Fundação Kellogg, o Fundo Baobá reúne intelectuais e ativistas afrobrasileiros para debater alternativas que ajudem a garantir a sustentabilidade político-financeira dos projetos desenvolvidos por essas organizações. A Fundação deixou um legado de US$ 25 milhões, ao qual se deve somar igual valor, advindo de doações, recursos de indivíduos, governos e empresas, assim como a iniciativa dos produtores do documentário. Dessa forma, vemos florescerem baobás – plantas, pessoas, organizações – que se somam a tantos existentes país afora, como aquele plantado, em 2002, na praça junto à escola de Geografia da Unicamp, em homenagem a Milton Santos. A placa de identificação registra que, assim como o grande geógrafo de reconhecimento internacional, o baobá é “símbolo da resistência do povo negro”.

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