“Sobrevivendo no Inferno” é uma aula de história, política, racismo e luta por direitos

Na semana passada, mais especificamente no 23 de maio, a Unicamp divulgou a lista com os nomes das obras obrigatórias para o vestibular 2020.  Na lista, o álbum “Sobrevivendo no inferno” do grupo Racionais Mc’s se destaca como uma das obras exigidas, não apenas por se tratar de um álbum musical que nos ensina ritmo e poesia, mas também por nos trazer raps cujas letras nos ensinam história, política, racismo, exclusão social e a luta por direitos.

O disco retrata o cotidiano do jovem negro na periferia, o sentimento de revolta e a luta para sobreviver num Estado que tira violentamente a vida de 23 mil jovens por ano. Os raps escancaram o dia-a-dia emocional e social do negro periférico, dissecando a exclusão racial que existe no país.

O cenário das músicas é a pobreza. O enredo e a narrativa é a exclusão, a discriminação e o racismo. A atmosfera é a do medo e da violência. O sentimento é de ódio, rancor, frustração, indignação. E o desfecho, o cemitério São Luiz (citado na música Fórmula Mágica da Paz, faixa 11 do álbum e que no final da década de 1990 era o cemitério com maior número de jovens negros enterrados no Brasil), ou o encarceramento penitenciário (falido, cruel e sanguinário, dissecado na faixa 7 do disco, com a música Diário de um detento, na qual fica nítida a crítica ao massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992). Em suma, sonhos abortados, juventude interceptada, futuro perdido.

Mais que uma aula de poesia e métrica, “Sobrevivendo no Inferno” é uma aula de história, racismo, violência, direitos e literatura. Mais especificamente, o álbum faz uma crônica da violência, exclusão, discriminação, racismo e falta de oportunidades à juventude negra.

Lançado em dezembro de 1997, Mano Brown tinha 27 anos e se declarava um sobrevivente no inferno da periferia de São Paulo de um país que sistematicamente extermina sua população negra há séculos, dando voz a muitos outros negros que sobrevivem na selva urbana, cujo maior vilão é o Estado e o racismo estrutural.

Eu tinha 15 anos quando o álbum foi lançado e “Sobrevivendo no Inferno” foi meu primeiro contato com o rap – meu e de muitos garotos e garotas daquela época. Mais que expor o racismo e a violência, o grupo devolveu à população negra brasileira a voz, o grito sufocado por tanta opressão e medo. Lembro-me que na época, muitas pessoas passaram a circular com camisetas que traziam estampadas o logo do álbum, uma cruz com o salmo 23, ou com a frase “orgulho de ser negro”. Essas mesmas pessoas eram os principais alvos das revistas policiais feitas nas portas das escolas públicas ou nas entradas dos bailes de black music. Essas mesmas pessoas se viam representadas nas letras do grupo rap.

É importante destacarmos que quando os Racionais Mc’s lançaram esse álbum, a lei 7.716 que determina o racismo como crime inafiançável já havia sido sancionada há 8 anos, em 1989. No entanto, o racismo que no Brasil se alimenta de práticas sutis, de nuances e formas maleáveis para atingir suas vítimas, continuava ceifando vidas ou agonizando sonhos. Quando esses quatro jovens pretos da periferia de São Paulo, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kl Jay começaram a soltar suas vozes e batidas com o sentimento de revolta e indignação, era como se eles apontassem a falha na Constituição, indignados com a sua ineficácia. 

Em 1997 o Brasil era então governado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e sua política de privatização de empresas públicas e estatais. Sua política neoliberal andava de mãos dadas com a premissa ideológica da democracia racial, que buscava afirmar a inexistência do racismo, negando a própria paisagem social que escancarava que a democracia racial ainda não havia chegado para os negros, pois estes ainda são minoria nas profissões mais remuneradas, nas posições de maior reconhecimento ou melhor renda, principalmente a mulher negra que ainda ocupa uma posição econômica e social extremamente desvantajosa.

Adicionalmente, nas escolas públicas da periferia mal se ouvia falar em racismo, exclusão social ou violência policial. Na sala de aula havia uma dissonância entre aquilo que estava no discurso dos livros ou dos professores e aquilo que muitos alunos e alunas de fato viviam nas quebradas. E era justamente nas músicas dos Racionais que esses jovens se reconheciam; reconheciam

a realidade árdua que enfrentavam dia a dia. Não era o ambiente escolar conteudista que aproximava o aluno da realidade dele, eram as músicas de quatro jovens negros e pobres, que com suas batidas e letras traziam esperança à uma camada da população esquecida das políticas públicas.

Em 2010, quando comecei a lecionar História e Filosofia na rede pública estadual, percebi que as aulas sobre racismo, abolição dos escravos e direitos civis faziam muito mais sentido para os alunos se analisássemos as letras do Racionais. Primeiro porque a arte tem esse dom de nos colocar em consonância com os sentimentos, de desencadear em nós o reencontro com nós mesmos e de nos fazer pensar o insuspeitável. Segundo, porque as aulas se tornavam muito mais dinâmicas e permitiam a recriação de sentidos e significados, fazendo com que os discentes compreendessem o mundo e as coisas a partir de si mesmos. Parafraseando Paulo Freire, se o objetivo maior da educação é a conscientização do estudante, devemos levar àqueles mais desfavorecidos e marginalizados da sociedade a entender sua situação de oprimido e agir em favor da sua própria autonomia e libertação, e sem dúvidas os raps traziam essa conscientização.

Como docente do ensino médio, fico muito feliz que a Unicamp tenha reconhecido publicamente a relevância pedagógica desse álbum para a formação dos estudantes do ensino médio e colocado a obra como leitura obrigatória.

Muito antes do governo Lula e da política de autoafirmação da população negra no Brasil; muito antes da lei 10.639/03 ser aprovada em 2003, lei esta que indubitavelmente é uma vitória, mas que em 15 anos de existência vem andando a passos lentos; muito antes do Estatuto da Igualdade Racial ser aprovado em 2010; muito antes da Lei de Cotas Raciais em 2012 ser sancionada,  os Racionais em 1997 já expunha em suas melodias o fato de que a cidadania e os direitos ainda são algo a ser conquistado pelos negros.

Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham terminado o ensino superior.

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”, afirma o início da faixa 3, Capítulo 4, Versículo 3.

O Racionais Mc’s tem para a população negra brasileira a mesma importância que o movimento pelos direitos civis dos negros teve nos Estados Unidos na década de 1960, como o Black Power, Martin Luther King, Malcon X e o Partido dos Panteras Negras, pois no Brasil,o grupo de rap, com suas rimas e melodias, fez a mesma pressão ou tiveram o mesmo impacto que esse movimento fez nos Estados Unidos. É claro que não estamos comparando, até porque ao contrário dos norte- americanos que estabeleceram regras claras de classificação e segregação racial, e que consequentemente engendrou todo o movimento de direitos civis para os negros, o Brasil sempre se nutriu de maneiras sutis para racializar e diminuir sua população negra. O que é preciso deixar registrado aqui e que é preciso admitir é a importância dessas músicas para a conscientização e emancipação da população negra brasileira, que hoje exige os seus direitos.

O afã desmedido desse grupo de rap, enfurecido com as estatísticas, frustrado com a negação de elementares direitos de cidadania à população pobre e negra, resistiu através da música, e melhor ainda, com suas canções devolveu ao negro o grito guerreiro de Ogum Iê (que o grupo musical saúda na faixa 1 do álbum), isto é, devolveu ao negro a sua autoestima e dignidade.

Todo o álbum dos Racionais nos obriga a parar e refletir. Suas músicas é um exercício de reflexão, pois ao ouvi-las experimentamos um assombro: é um negro contando a sua história “de lágrima, sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão” (trecho da faixa 7, Diário de um detento). Não é como nos livros didáticos, que na maioria das vezes traz a versão de um branco contando a história de um negro ou do povo negro, mas a narrativa da condição do negro narrada por um negro.

 

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