“Eu olho para o ser humano”

por Maurício pestana  |  fotos Ticiana Bitencourt/divulgação

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Ela nasceu em Salvador, em 1972 e, contrariando o destino marcado pela maioria das jovens negras de sua cidade, Eronildes Vasconcellos Carvalho – mais conhecida como Tia Eron – foi a primeira mulher negra filiada a um partido de direita,  o (DEM), a tornar-se vereadora por três legislaturas na história da capital baiana.
Mas não parou por aí: embora nascida e criada em Salvador, local de maior concentração de templos de religiões de matrizes africanas, principalmente o cadomblé, Eron é membro ativa da Igreja Universal do Reino de Deus, cujos atritos com religiões de matrizes africanas são muitos. Seu trabalho em prol de crianças carentes ganhou bairros, como os de Saramandaia, despertando nos dirigentes da Universal, o desejo em investir em seu projeto político. Saiba o que pensa a jovem liderança negra do DEM e da IURD, que também preside a comissão de direitos da mulher da Câmara Municipal de Salvador

 

Mulher, negra, evangélica e de direita, em uma cidade como Salvador. A discriminação em seu caso ultrapassa os limites da cor?
Sem dúvida nenhuma e tem várias questões: a de ser mulher, depois a de ser negra e, por último, a fé, porque sou evangélica. Nesse aspecto existem questionamentos de como eu me visto e me adapto nesses lugares onde a questão racial é discutida. A tendência é sempre sofrer este tipo de violação, que é um direito que eu tenho. Mas não tem jeito, a gente vai ter que passar por este vale.

Como começou seu interesse pela política?
Eu fazia um trabalho social  e isso começou mais especificamente com crianças em escolas públicas em bairros humildes, onde pais, mães ou as próprias crianças estão nas entranhas desses bairros. Elas vinham na igreja para comer, não tinham comida em casa, não tinham café da manhã, lanche, não tinham nada, e nós tínhamos um lugar para acolher esses meninos e meninas. Esse trabalho foi crescendo, também acompanhando essa tendência de dentro da comunidade que é formada por muitas crianças pobres, que não tinham oportunidade de educação, saúde, de nada. Lá elas tomavam banho, comiam, assistiam TV e ouviam histórias. Várias crianças iam até sem seus pais. O trabalho cresceu tanto que passamos a fazê-lo nas ruas, pois no local não cabia tanta gente. Diziam que isso tudo tinha a ver com política, mas não sei onde havia política. Para mim havia mesmo era vontade e disposição de trabalhar e servir o outro, uma causa humanística. Esse trabalho foi o pontapé inicial para a vida pública e política.

 

Como evangélica da Universal do Reino de Deus, qual é a sua relação com as lideranças e os adeptos das religiões de matrizes africanas de Salvador?
Bastante pacífica, até porque não olho a convicção de fé desses líderes religiosos. Desde espírita, candomblecista, umbanda, quimbanda, eu não olho. Eu olho para o ser humano. E foi com esse olhar que a gente começou a fazer o trabalho dentro do terreiro.

 

Trabalho dentro de terreiro?
Sim! Fui convidada pela comunidade no Cabula, Comunidade  de Vila Nova, que é uma cidade, um submundo de pobreza, de miserabilidade, de sofrimento. A melhor casa que tinha dentro da comunidade era um terreiro, minha primeira reação foi: “Caramba! Me trouxeram para o lugar errado.” Mas fiquei quetinha e até mesmo confiando em quem estava me recomendando. Eu não fui lá bater na porta, me mandaram até pela forma que vinha me propondo a trabalhar. Imagine que coisa louca, havia acreditado em mim e eu, no primeiro momento, estava assustada? Nossas reuniões eram e são feitas até hoje com a mãe de santo do local, de forma harmoniosa..Ali começamos a bancar um trabalho com sopa e pão. Eu brincava com ela: “Acho que você vai ser reprimida.” E a mãe de santo respondia: “Quem manda aqui sou eu e quem decide aqui sou eu, você é minha filha.” Essa palavra de sentido duplo confundiu muita gente.

É um caso bastante inusitado…
Quando falávamos sobre isso, ninguém acreditava, até que um grande amigo – que hoje é secretário municipal da reparação – contou que viu uma foto minha dentro do terreiro, a gente fazendo alguns trabalhos sociais. “A vereadora Eron frequenta aqui?” “A Eron é minha filha.” Ele tomou um susto! “Ela é da igreja ou do candomblé? Eu tinha uma desconfiança.”

 

E dentro da sua igreja, como isso era visto?
Também houve certa dificuldade e indagação em entender o que estava acontecendo, algumas pessoas me perguntavam: “Cuidado, será que você não está fortalecendo aquilo que você combate?” Imagine a pergunta, né? Bem capciosa. Eu disse que não, porque eu não combato os seres humanos, não estou confrontando com os irmãos, preciso fazer alguma coisa e foi assim que alguns amigos candomblecistas perceberam realmente qual era a ideia do trabalho, qual era a proposta que nós tínhamos e começaram a respeitar. Se falar, fala aqui atrás.

 

Como a senhora analisa a crescente onda de intolerância religiosa?
A gente tende a colocar numa vala comum, nivelar por baixo e dizer que eu e tantos outros somos assim. Isso não é verdade, acredito que tenha, não vai deixar nunca de existir, mas é uma particularidade de cada indivíduo que, dentro da sua fé, acha que pode definir o outro. Não podemos é generalizar, dizer que somos assim, porque a realidade é que estamos, e eu nesse particular, tenho dado demonstrações diversas da forma como a gente se propõe de forma séria. Não é só pela questão, pelo viés político, pelo interesse pelo ganho político. A gente tem uma proposta comprometida em cima do aspecto do ser humano, sobretudo, na questão racial, porque os caminhos são diferentes. De fato, o que nos une está acima das diferenças, então, não importa se os caminhos são diferentes. Importa, agora, o que eu sou para você e o que você vai passar a ser para mim e acabou.

 

Existem outros trabalhos assim em sua igreja?
Posso citar a indicação por um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, de um promotor do Ministério Público, Miro Sena, que é do candomblé, para Secretário de Justiça da Bahia. A indicação foi do PRB que, como todos sabem, é um partido ligado à IURD. A indicação obedeceu apenas ao olhar técnico da qualificação e à competência do indicado. Um homem negro em um cargo de visibilidade e de importância. Esse exemplo é apenas uma demonstração de que a intolerância religiosa não é uma marca de toda a Igreja Universal. Lembro também de Reginaldo Germano, deputado federal na época, que já estava junto com o vovô do Ilê aqui na Bahia, trazendo emendas. Olha há quanto tempo tem a Senzala do Barro Preto, isso é sério, é uma vida. O Ilê é o que é, mas na época foi um pastor que providenciou a emenda e hoje é uma sede digna dentro do Curuzú, no bairro da Liberdade, em Salvador. É mais uma proposta de um deputado federal eleito aqui, mas que não governava apenas para uma igreja, para uma instituição, para um segmento religioso.

 

Por que essas coisas não são divulgadas?
Talvez por que alguns de nossos irmãos negros não queiram ou não tenham muito interesse em saber dessas coisas ou achem que ignorar é mais conveniente do que aceitar que essas figuras, que esses autores, assim como eu, realmente têm um comprometimento com a questão racial. E aí preciso citar, ilustrando com muita propriedade e com a sabedoria: esse segmento veio para fazer escola, porque está sempre de coração aberto e demonstrando isso.

 

Voltando à política, a senhora contraria a trajetória das grandes lideranças negras da atualidade, em sua maioria oriundas de partidos de esquerda. Como vê isso?
Eu sou democrata! Isso é muito interessante porque o meu partido vem historicamente tratando de um partido de figuras políticas de grandes nomes num cenário brasileiro. Mas a gente precisa fazer uma reflexão no sentido de que a minha acolhida dentro desse partido, foi olhando o número de votos, mostrando que negro vota em negro, derrubando este estigma, sobretudo, do que somos capazes apesar de não ter essa história política. Sou de origem soteropolitana, baiana, nascida na América, eu não vim de um berço abastado, afortunado. Comecei em 2000, na época era o partido que estava no governo e realmente à frente da cidade, do estado, e porque não dizer do país. Mas como essa dinâmica da política muda o tempo todo, permaneci, mas nunca tive problemas e sempre defendi minhas convicções dizendo o que pode e deveria mudar no partido.

 

Como é a sua relação com Antonio Carlos Magalhães Neto?
Ele é a grande estrela desse partido. Saiu como candidato majoritário nas últimas eleições, e eu tive que fazer o meu dever de casa. E o meu dever era dizer a ele: “Neto, você precisa ir na Liberdade, conhecer o trabalho do Ilê.” “Mas lá  não vão me aceitar”, respondeu. “Vai!, você precisa pensar num projeto político em relação aos negros, você não pode querer governar Salvador, que é uma cidade majoritariamente de negros, sem pensar nesses negros. Você precisa trazer uma proposta nesse aspecto.”

 

Quando fala do negro, a impressão é que é a senhora desassocia a questão racial da ideológica, que difere direita da esquerda…
Exatamente, porque não é só pela sigla, não é só pelo processo democrático, é, sobretudo, pelo processo de conscientização que eu tenho me pautado. A história nos revela isso. E o que é que a história, no ponto mais vulnerável contra os negros, mostra que o meu irmão negro é que me vendia, meu irmão negro é que me açoitava. Então, eu vou perpetuar essa história, essa cultura? Não posso! Agora, com o entendimento que tenho, com a razão e a conscientização, tenho a obrigação de mudar essa história, fazer a diferença, até porque os brancos jogam na cara: “Como você quer discutir a questão racial se isso começou com vocês mesmos, uns vendidos pelos outros?”
É preciso elaborar rapidamente essa resposta com raciocínio e dizer que tudo foi real, mas que fizemos isso influenciados, incentivados e induzidos pelos brancos. Agora, o que eu não quero é dar prosseguimento a esse tipo de cultura, a esse processo autofágico em que um destrói o outro, seja ele usando instrumento ideológico ou não.

 

O que a senhora diria que é primordial para que o negro avance, econômica e socialmente, mais rápido na sociedade brasileira?
Precisamos aprender a nos proteger. O negro, quando ascende, tem que ter a obrigação de deixar a porta aberta para outro negro, não pode passar pela porta, trancar e passar uma trava para que outros irmãos não entrem. Precisa entender que quando ele sobe, ele não vai sozinho, leva com ele uma série de outros tantos irmãos negros. Isso eu digo na dimensão da palavra. Não quero aqui entrar no mérito se é do partido A, B, C, D, ou da ideologia H ou Y, usando essa ou outra fórmula, se opera desse ou daquele modo, se tem essa ou aquela fé. Eu não quero saber, isso não vai pesar.
O que vai pesar é que um irmão negro tem que
ajudar o outro.

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