Preciso confessar: poucas coisas me incomodam tanto quanto ver influenciadores negros, alguns que eu mesmo já admirei, usando sua voz e seu alcance para divulgar jogos de azar, cassinos online e apostas esportivas, ver influenciadores negros divulgando jogos de azar como se isso fosse apenas “mais um job”, mais uma parceria comercial, mais um link de comissão. Não da! Para mim, é uma ferida aberta. É uma dor que carrega história, memória e responsabilidade. E quanto mais eu observo esse movimento crescente, mais difícil fica não pensar na figura incômoda e dolorosa dos antigos capitães do mato. Não por equivalência direta da violência sabemos que nada na contemporaneidade pode ser comparado literalmente ao horror da escravidão, mas pela função simbólica que se repete: a de negros usados, ou se deixando usar, para prejudicar outros negros.
O que me corta é saber exatamente quem são os seguidores desses influenciadores. A maioria é negra, periférica, gente que acorda cedo, pega ônibus lotado, enfrenta fila para pagar conta, luta com salários apertados e sonhos grandes. Gente que enxerga nesses influenciadores um espelho possível, uma projeção de esperança, uma chance de imaginar que o sucesso também pode ser deles. E é justamente esse público, tão vulnerável e tão carregado de expectativas, que está sendo empurrado para um sistema predatório, violento e extremamente lucrativo para as empresas e para os influenciadores, nunca para os seguidores.
Ver um jovem negro incentivar outro jovem negro a apostar dinheiro que ele não tem é devastador. É triste perceber que muitos desses influenciadores promovem um estilo de vida que não foi conquistado com apostas, mas com contratos, publicidade e visibilidade enquanto fazem seus seguidores acreditarem que basta “acertar uma múltipla”, “estudar sinais”, “seguir o método” ou “não ter medo”. Eu vejo essa retórica e sinto o estômago embrulhar. Porque não é só mentira. É crueldade mascarada de oportunidade. É exploração disfarçada de representatividade.
E é aí que a comparação com os capitães do mato me atravessa. Eles eram negros obrigados a servir ao sistema escravocrata, caçando, punindo e entregando outros negros à violência. Hoje, quando vejo influenciadores negros usando sua imagem para atrair seus próprios seguidores para cassinos online e casas de apostas, não consigo evitar a pergunta: quem estão servindo? E, mais ainda: a quem estão entregando? Não há tronco nem pelourinho, mas há dívida, ansiedade, vício, desespero, dependência emocional e financeira. Há pessoas perdendo aluguel, comida, estudos, saúde mental enquanto quem promove esses serviços lucra, cresce e ostenta.
É revoltante perceber que a representatividade, que tanta gente lutou para conquistar, está sendo usada como atalho para enganar quem mais precisa de proteção. A representatividade sozinha não é avanço; pode ser uma arma quando é colocada a serviço de práticas que enfraquecem a comunidade negra em vez de fortalecê-la. E o que me parece ainda mais grave é perceber como alguns influenciadores justificam esse tipo de parceria com discursos vazios sobre “mudança de vida”, “acreditar na sorte”, “aproveitar o momento” ou “não se limitar”. É impressionante como a linguagem da meritocracia se adapta facilmente ao marketing da exploração.
Os influenciadores talvez não percebam, ou talvez percebam e ignorem, mas cada vez que promovem uma aposta, estão oferecendo à comunidade negra não uma oportunidade, mas uma cilada. E como alguém que acredita na potência do nosso povo, isso me dói profundamente. Dói saber que, mais uma vez, estamos sendo usados pelo sistema. E pior: que alguns estão se deixando usar com gosto, com glamour e com comissão.
Escrevo tudo isso na esperança de que essa reflexão incomode. Que provoque. Que faça repensar. Que faça algum influenciador negro se olhar no espelho e perguntar sinceramente: estou ajudando ou prejudicando o meu povo? Estou libertando ou aprisionando? Estou sendo ponte ou sendo armadilha? Porque, no fim das contas, nós já fomos explorados demais pela história. Não podemos aceitar ser explorados por nós mesmos.






