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Quatro dias antes de fazer uma palestra na semana \u201cMulheres que transformam e inspiram\u201d, da equipe de inova\u00e7\u00e3o do Correios, no in\u00edcio de mar\u00e7o deste ano, recebi o diagn\u00f3stico de uma doen\u00e7a grave, cujo tratamento \u00e9 uma possibilidade e a cura, uma inc\u00f3gnita.<\/p>\n\n\n\n
Naquele momento eu n\u00e3o tinha muita nitidez sobre o diagn\u00f3stico, gravidade e se conseguiria tratamento. Minha cabe\u00e7a rodava e eu simplesmente achei que n\u00e3o conseguiria dar conta de fazer aquela conversa, programada algumas semanas antes.<\/p>\n\n\n\n
Ainda que eu tivesse todo o conte\u00fado na cabe\u00e7a (sim, deixei para montar a apresenta\u00e7\u00e3o dois dias antes do evento) achei que poderia estar t\u00e3o abalada emocionalmente que n\u00e3o conseguiria falar e transmitir a mensagem pensada.<\/p>\n\n\n\n
Mas veio imediatamente \u00e0 minha mente um trecho da m\u00fasica, da Elza Soares (1930-2022), a mulher do fim do mundo, que enfrentou a fome, o machismo, a viol\u00eancia dom\u00e9stica, o racismo e o desprezo de gravadoras. Se reinventou, inovou, foi resiliente e cantou at\u00e9 o fim.<\/p>\n\n\n\n
O que se cala, Elza Soares<\/p>\n\n\n\n
\u201cMil na\u00e7\u00f5es<\/p>\n\n\n\n
Moldaram minha cara Minha voz<\/p>\n\n\n\n
Uso pra dizer o que se cala O meu pa\u00eds<\/p>\n\n\n\n
\u00c9 meu lugar de fala\u201d.<\/p>\n\n\n\n
Uma chave virou no meu c\u00e9rebro e, n\u00e3o s\u00f3 consegui fazer o conte\u00fado da palestra, como tive a ideia de falar sobre a rela\u00e7\u00e3o entre inova\u00e7\u00e3o e resili\u00eancia, a partir de uma an\u00e1lise de minha pr\u00f3pria experi\u00eancia, de outras mulheres negras e da imprensa negra. Assuntos que n\u00e3o paro de citar, porque pessoas negras, seus projetos de vida, transforma\u00e7\u00e3o, resili\u00eancia e inova\u00e7\u00e3o, sempre estiveram aqui e sempre estar\u00e3o no futuro, n\u00e3o \u00e0 toa que ouvimos e lemos, com frequ\u00eancia, que o \u201cfuturo \u00e9 ancestral\u201d.<\/p>\n\n\n\n
Disse, a fil\u00f3sofa, Kati\u00fascia Ribeiro, em 2020, no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, \u201c[…] Afirmo que a maior estrat\u00e9gia de sobreviv\u00eancia foi a nossa capacidade de resist\u00eancia e de imbricar conhecimentos diversos, mesmo em meio aos destro\u00e7os que o colonialismo fez de n\u00f3s e da di\u00e1spora africana. Temos trazido o olhar para tr\u00e1s e o assegurar-se nas lembran\u00e7as como pontos de reflex\u00f5es e de possibilidades para um viver digno que retraz as experi\u00eancias de um povo que sobreviveu e sobrevive apesar das frequentes viola\u00e7\u00f5es e desumaniza\u00e7\u00f5es que lhe foram submetidas no processo escravista e continuam at\u00e9 os dias atuais. Sem d\u00favida, reconectar \u00e0s pr\u00e1ticas organizativas baseadas nas ancestralidades africanas \u00e9 ponto fundamental que move e mover\u00e1 sempre nosso futuro. A organiza\u00e7\u00e3o de uma sociedade que segue os princ\u00edpios ancestrais est\u00e1 calcada na pr\u00e1tica de solidariedade-comunidade\u201d.<\/p>\n\n\n\n
Por isso, eu entendo que a resili\u00eancia alimenta a inova\u00e7\u00e3o e no meu caso n\u00e3o foi diferente. Eu era uma garotinha com dificuldade de concentra\u00e7\u00e3o, em alguma medida t\u00edmida e \u00e0s vezes com medo do mundo e que amava ficar sozinha. Ao mesmo tempo, ainda que pare\u00e7a contradit\u00f3rio, independente, desbravadora, forte e com autoestima elevada.<\/p>\n\n\n\n
Hoje, com 45 anos, nascida e criada em uma fam\u00edlia negra e depois de mais de duas d\u00e9cadas atuando em prol da equidade e<\/p>\n\n\n\n
do enfrentamento ao racismo e aquilombando com mulheres e coletivos de gente negra, sou jornalista, comunicadora, colunista da Revista Ra\u00e7a, vivo de ler, escrever e de definir e executar atividades que exigem concentra\u00e7\u00e3o e muito planejamento.<\/p>\n\n\n\n
Ainda amo ficar sozinha, mas aprendi a socializar (quem diria que hoje eu tamb\u00e9m seria gerente de rela\u00e7\u00f5es institucionais, em uma institui\u00e7\u00e3o relevante para o campo do investimento social privado e da filantropia). Continuo com esp\u00edrito livre, autoconfiante, independente, mas agora sei pedir ajuda e sou muito mais destemida, afinal de contas, n\u00e3o ando s\u00f3.<\/p>\n\n\n\n
Percebi que essa transforma\u00e7\u00e3o tem rela\u00e7\u00e3o direta com resili\u00eancia e inova\u00e7\u00e3o, porque a resili\u00eancia est\u00e1 na capacidade de voltar a um determinado estado depois de passar por um trauma, obst\u00e1culo e dificuldade. Um aprendizado constante de \u201creconstru\u00e7\u00e3o\u201d. E, a inova\u00e7\u00e3o, por sua vez, \u00e9 a habilidade de criar algo sempre novo, original. Capacidade de fazer de outro jeito, de transformar.<\/p>\n\n\n\n
Parafraseando a sauda\u00e7\u00e3o que Maria de Lourdes Vale do Nascimento (1924-1995), professora, assistente social, intelectual, ativista e colunista do jornal O Quilombo, que contribuiu e sedimentou espa\u00e7o para as comunicadoras negras, fazia em sua coluna, Fala a Mulher, eu digo:<\/p>\n\n\n\n
\u201cAmigas leitoras e patr\u00edcias de cor\u201d, recomendo fazer sempre diferente, inovar, fazer do seu jeito, a partir de suas experi\u00eancias e convic\u00e7\u00f5es e de modo que atenda suas causas e preocupa\u00e7\u00f5es, para alavancar o seu trabalho, sua vida particular e, se, pessoa negra, promover o seu e o nosso bem-viver.<\/p>\n\n\n\n
Rachel Quintiliano \u00e9 jornalista, p\u00f3s-graduada em comunica\u00e7\u00e3o e sa\u00fade, defensora dos direitos humanos e promotora da equidade de g\u00eanero e ra\u00e7a. Escreve sobre identidade, autoestima, livros, filmes e s\u00e9ries.<\/p>\n\n\n\n
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