133 anos de Abolição

Mas o que esta data representa para todos os brasileiros, em especial para os descendentes de escravos? Três pontos de vista devem ser prioritariamente considerados na análise: o histórico, o político e o humano.

Do ponto de vista histórico faz-se necessário estudar as profundas marcas que a escravidão deixou em nossa sociedade, e para isso não é preciso ser militante ou especialista na causa negra. Basta conhecer e entender os dados dos principais órgãos de pesquisa do país, como IBGE, IPEA e Dieese, os quais demonstram que no Brasil o salário médio do trabalhador negro é quase a metade do de seu colega branco; que o negro entra mais cedo para o mercado de trabalho; que o negro tem menos acesso à educação e expectativa de vida inferior; e que esta cidadania incompleta teve início em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, quando fomos jogados às margens da sociedade.

Ao analisarmos o aspecto político verificamos um total descaso da parte de quem mais se benefi ciou com os quase 400 anos de escravidão: o Estado brasileiro.

Se hoje somos a 11ª. economia do planeta, devemos nos lembrar que dos 508 anos de nossa existência, quase 400 foram construídos basicamente com a mão-de-obra escrava e por isso esse país tem uma enorme dívida para com os afro-descendentes. Todos os países que violentaram os seus (como é o nosso caso) tiveram de ressarcir suas vítimas; o maior exemplo vem da Segunda Guerra Mundial, em que não só a Alemanha teve de arcar em parte com as atrocidades cometidas contra o povo judeu, mas também setores da comunidade internacional mobilizaram-se na construção do Estado de Israel. Quanto a nós, negros, o Estado brasileiro até hoje não assumiu essa dívida histórica.

Nos Estados Unidos, apesar das leis segregacionistas que imperavam após o fi m da escravidão, havia uma preocupação do Estado norte-americano com a educação e o desenvolvimento da comunidade negra local; já no Brasil uma das primeiras leis criadas, após o fi m da escravidão, foi a “lei da vadiagem”, que autorizava prender qualquer cidadão que estivesse vagando. O Estado brasileiro fi nanciava a vinda de trabalhadores europeus para substituir a mão-de-obra negra, que não foi aproveitada quando não pôde mais ser escravizada; também aqui foi queimada toda a documentação sobre escravos, com medo de que pudéssemos reivindicar o ressarcimento pelos quase quatro séculos de violência e trabalhos forçados.


“O Brasil financiava a vinda de trabalhadores europeus que substituiam a mão-de-obra negra, não aproveitada quando não pôde mais ser escravizada; queimouse a documentação sobre os escravos, com medo de que se pudesse reivindicar o ressarcimento pelos quase quatro séculos de violência e trabalhos forçados”.

Do ponto de vista humano, a resposta que nós, afro-descendentes, demos a este país que nos escravizou, violentou e nada nos pagou foi fantástica! Combatemos a discriminação com diálogo e integração, com a não-violência, com organização e trabalho. Nos primeiros anos pós-abolição, criamos a maior organização negra de todos os tempos: a Frente Negra Brasileira, que no início do século passado já se preocupava com a nossa educação e com a política.

Marcamos o século 20 em todas as áreas nas quais não éramos preteridos pela exclusão instaurada, por exemplo, nas artes, no esporte e na literatura, imortalizando nomes da magnitude de Aleijadinho, Ademar Ferreira da Silva, João do Pulo, Pelé, Pixinguinha, Cartola, Milton Nascimento, Machado de Assis, Cruz e Sousa, Chiquinha Gonzaga, Lima Barreto, entre muitos outros. Destacamo-nos até nas ciências (campo restrito aos afortunados da sociedade excludente que se formou), com a genialidade do geógrafo Milton Santos, enfi m, demos cara e forma à cultura deste país.

A batalha não parou por aí: graças a nossa luta recente por ações afirmativas, mais de 50 universidades brasileiras adotaram o sistema de inclusão de negros, número superior até mesmo ao dos Estados Unidos. Por conta das nossas reivindicações, hoje mais de 200 mil afro-descendentes estão em universidades pelo sistema ProUni. Fundamos organizações como a Educafro, o Instituto Steve Biko e várias outras oriundas do movimento social negro, que têm levado milhares de negros às universidades.


Por meio da nossa luta, muitas empresas começam a rever seu histórico quadro de exclusão e iniciam a implementação do sistema de valorização da diversidade, dando oportunidades iguais para todos; por causa também de nossos questionamentos, pela primeira vez, em 133 anos de abolição, temos quatro negros como ministros de Estado. São eles: Gilberto Gil, da Cultura; Orlando Silva, dos Esportes, Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas da Promoção da Igualdade Racial – Seppir, e Marina Silva do Meio Ambiente também na mais alta corte brasileira, Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal.
Saímos do nada – de uma aposta da elite racista de que em 100 anos sumiríamos da face do Brasil – para nos orgulharmos de ser o maior país negro fora da África, e que ainda há de ser a maior democracia racial do planeta.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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