2 Anos sem Marielle
14 março de 2018. Marielle Franco participa de um fórum de mulheres na ONG Casa Das Pretas, na Lapa, Centro do Rio de Janeiro. Saindo dali, a parlamentar foi morta com quatro tiros na cabeça, junto com o motorista Anderson Gomes. À época com 38 anos e vereadora em primeiro mandato, Marielle Franco era negra, Bisexual e criada no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Um ano após o ocorrido, o caso ainda não foi elucidado.
Marielle usava seu mandato para lutar por causas relacionadas aos direitos humanos e denunciar a violência policial na cidade. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é o perfil típico das mulheres vítimas de violência letal em todo Brasil.
Em nota, logo do ocorrido, a Polícia Civil informou que trabalharia para dar resposta imediata ao crime. Um ano já passou. Nenhuma resposta. Nenhum esclarecimento. Em fevereiro deste ano, com 11 meses de indefinições, a Anistia Internacional cobrou soluções.
A RAÇA reuniu os familiares da ex-vereadora, num bate-papo. Franco como sugere o sobrenome da família. O local não poderia ser mais apropriado: o Centro Cultural Calouste Gulbenkian, onde funciona a sede da Ceam – Centro Especializado de Atendimento à Mulher. A legítima família de Marielle Franco. Com vez e voz.
LUYARA FRANCO, A ÚNICA FILHA
RAÇA: Como se sente, um ano após o ocorrido?
LUYARA: Fiz 20 anos em dezembro, meu primeiro aniversário sem minha mãe. Tive que amadurecer. A menina de antes de 14 de março de 2018 passou a ter responsabilidade. Ingressei na faculdade, estou ajudando minha avó financeiramente porque minha mãe ajudava em maior parte. Parte do dinheiro que recebo de pensão vai para ela. Eu me sinto muito mais independente, porém sem poder dar flashes de rebeldia. A minha mãe era o pilar da família e estou tendo que pegar esse lado, eu e minha tia tentando dar uma centrada. É muita coisa acontecendo e nós somos muito coração. A minha mãe era muito mais para o racional.
RAÇA: Você é uma jovem negra nesta implacável sociedade. Como lida com a visão do outro por toda a sua história?
Luyara: Demorei muito para me identificar como mulher negra. Quando era pequena, pedia a minha mãe pra alisar o cabelo, dizia que era morena, e quando mudei de escola aos 13 anos, pude sair um pouco da bolha do lugar em que eu vivia e estive de cara com a política, por mais que eu acompanhasse minha mãe desde pequena. Fui para um colégio de elite, a minha mãe ganhou bolsa de estudos, e me vi num lugar onde só tinha branco. Aí achei estranho, não era o que eu via antes. E passei a transitar nos dois mundos. Nos finais de semana eu ia pra casa do meu pai, na Maré. Estava sempre tentando identificar esses dois lados. Entrei para o grêmio estudantil e lá comecei a identificar. Fazia parte de um coletivo de mulheres e identificava que as próprias meninas criavam o racismo entre a gente. Daí comecei a entender o feminismo negro, a solidão da mulher negra, minha adolescência foi o que há… agora vejo o racismo mais institucional, tentando entender o sistema de cotas, eu não entrei na faculdade por cotas mas tenho bastante amigos que entraram. Outro dia saí de uma reunião de trabalho e fui jantar. Estava com meu telefone na mão e um copo. Um cara me chamou e pediu pra eu levar uma cerveja pra ele. Fiquei olhando e ele insistiu. ‘Você não deve ter entendido, traz uma cerveja pra mim’. Quando eu ia responder que não trabalhava ali, ele pediu desculpas. É por isso que minha mãe morreu lutando. É por isso que tenho que continuar a lutar. Sempre dá aqueles estalos: tem que seguir mesmo em frente, não pode parar.
Raça: Como tem sido o seu dia a dia?
Luyara: Tento ocupar bastante a minha mente. Faço Educação Física na UERJ. De dia fico na faculdade, à tarde no trabalho. Participo do time de handebol, do time de líder de torcida e sou ritmista. Toco caixa, surdo e tamborim. Estou tentando preencher meu tempo com as coisas que eu já fazia antes, coisas que me fazem bem. Final de semana procuro ficar em casa.
Raça: Seu círculo de amigos mudou?
Luyara: As pessoas que já conviviam comigo, eu sempre puxo pra perto. Quem me conhece há pouco tempo, fica sabendo do acontecido, eu fico meio assim de falar, comentar. Tem quem queira minha amizade por interesse pelo rótulo de ‘filha da Marielle’. Meus amigos antigos estão na luta comigo desde sempre. Teve gente que eu sentia falta pra caramba e, infelizmente pelo ocorrido, se reaproximou de mim e agora a gente se vê mais do que antes. Mas chegou muita gente pra somar, como a Kênia Maria, amigos que eram da minha mãe, que eu não conhecia.
Raça: O que você espera da vida?
Luyara: Tenho me preocupado muito com a nossa saúde. Eu estava tendo muitas crises de ansiedade e depressão. Há pouco tempo que os remédios começaram a fazer efeito. Além da justiça, é claro, quero cuidar da saúde dos meus avós e da minha tia. Quero que resolvam o caso e que as pessoas parem de usar o nome da minha mãe. Tem gente se aproveitando descaradamente do nome, viajando, ganhando dinheiro, ganhando trabalho e nós estamos ficando de lado. Esqueceram a família, legitimando uma coisa e deslegitimando outra. A justiça em todos os âmbitos. Espero a constitucional e também a justiça do dia a dia, de ter caráter, ter empatia e sororidade com as mulheres. A gente vê a família majoritariamente matriarcal. É preciso um pouco mais de cuidado.
Raça: Existe uma Luyara antes e outra depois de 14 de março de 2018?
Luyara: Virou só mais um rótulo e às vezes as pessoas julgam muito. ‘Você é filha da Marielle, não pode fazer isso ou aquilo’. Mas eu já fazia antes! Agora a diferença é que vocês me reconhecem. Tem pessoas que nem sabem que ela tinha filha! As pessoas estão ganhando notoriedade em cima do nome, não sabem sequer a história certa. Luiara é uma menina doce, bem-humorada, introspectiva, mas sociável, já passou por algumas coisas na vida… (neste momento, ela chora). Me formei no curso de inglês após sete anos, Marielle insistiu tanto!
Raça: Hoje, o que te faz sorrir?
Luyara: A minha prima. A minha mãe, além de tia, era madrinha da Mariah e eu tenho tentado pegar esse lado pra mim. Busco na creche, levo pra brincar. Meus amigos também me fazem sorrir. Por questões de segurança eu não faço tudo o que fazia antes. Aliás, há pessoas que tem segurança e a própria família não tem. A ausência é muito forte. Eu estava morando com a minha mãe fora da casa dos meus avós há sete anos. Voltar pra casa da minha avó, no lugar em que todos moramos juntos, e não ter aquela presença… pra mim parece que ela vai abrir a porta e entrar a qualquer momento. Tenho um quadro com o rosto dela no meu quarto. Às vezes estou me arrumando e acho que ela vai chegar e dizer ‘ih, garota! Isso é mentira, esse quadro foi só um presente pra você’. Sinto a presença dela espiritual. Sinto que vou cair e ela me levanta. Minha fé aumentou. Somos todos devotos de Maria. Sou batizada, crismada, se não fosse a nossa fé eu já tinha caído. Quase caí acreditando, imagine… agora estou mais tranquila. Fiz tratamento psicológico por seis meses e ainda faço o psiquiátrico. É uma coisa que fica remoendo muito. Até na própria terapia, ficar falando dos meus traumas está me fazendo mal. Um mês após o acontecido eu comecei na psicóloga. Dei uma parada e agora sinto que está fazendo falta.
Raça: Diante do cenário político que temos atualmente, na presidência do país, no governo do estado do Rio de Janeiro e na prefeitura da cidade, o que te causa medo?
Luyara: O legado que esses caras deixam. O discurso de ódio que já pregavam antes mesmo das eleições. Às vezes tenho medo de sair com a camisa ‘Lute como Marielle Franco’. As pessoas olham, leem. Tem gente que vem e me abraça. Nunca passei por nenhuma agressão verbal e nem física, mas recebo aqueles olhares. Pouco antes das eleições eu estava passando por São Cristóvão (bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro) e tinha um carro de polícia. Um dos policiais bateu com as mãos no teto do carro e disse ‘olha a blusa da garota’. Eles leram, ficaram me olhando de cima abaixo, fiquei nervosa, demos a volta. Não tive coragem de passar na frente deles. A gente nunca sabe o que podem fazer. Eles antes já faziam sem ter alguém apoiando. Agora, então, que tem aquela pessoa que incentiva a ideologia deles…
ANIELLE FRANCO, A AGUERRIDA IRMÃ
Raça: Você passou a ser o esteio da família, sobretudo psicologicamente. Como está sendo essa jornada, de dar conta da sua vida pessoal, a sua casa, e seus pais e sua sobrinha?
Anielle Franco: É muito difícil. Eu não esperava passar por isso. Ninguém aqui esperava. Mas por ela e por eles eu tenho me desdobrado. Fui mandada embora de um emprego (como professora) em 2018 porque eu viajei muito, porque fiquei muito na mídia. Os pais não me queriam publicamente falando sobre política, independente da minha irmã ter sido assassinada. Só que decidi que ia fazer isso. Ia dividir meu tempo entre a mãe, a filha, a dona de casa, a tia-mãe, tocar a minha vida e tentar tocar um pouco o legado da Marielle. Porque não é só nosso, a gente sabe disso. Qualquer pessoa que perde um familiar, não tem como dar as costas para um acontecimento desse. É meu sangue ali. Eu vou honrar e vou fazer o que eu puder até o final. Tenho tirado um dia pra tocar o Instituto Marielle Franco, que nós legalizamos e aos poucos vamos dando forma. Por enquanto não temos sede. Estamos fazendo tudo na casa da minha mãe, que tem mais espaço. E mantenho o ‘Papo Franco’, que a Marielle começou comigo em 2015 e eu não esperava ter de dar conta disso sozinha. Começamos um ano antes da campanha dela. Eu tenho tentado buscar para eles auxílio de todas as formas: psicológico, emocional, para que eles entendam que a gente não tem escolha, não temos como voltar atrás. Não temos como não aceitar que somos a família de Marielle e temos que dar conta disso. Temos sido muito visados negativamente e quando começamos a falar… ‘ah, são os negros, as mulheres nervosas’. O meu pai ainda não caiu nessa, mas eu, minha mãe e Luiara, quando abrimos a boca, dizem ‘chegaram as raivosas’, ‘as pessoas que não são muito bem vistas para estarem aqui’. Temos passado por tudo isso e confesso que é muito difícil.
Raça: Como tem sido a troca com o povo preto?
Anielle: Temos sido bem recebidos. As pessoas abraçam muito a causa. Só que o que acontece hoje, infelizmente, é que nem toda mulher preta me representa. Vivemos num mundo muito difícil onde mesmo pessoas negras se aproximam da causa Marielle vendo um oportunismo. E até identificarmos isso, não é fácil. Não somos figuras da mídia. Marielle estava começando e nós estávamos sempre nos bastidores. Eu revisava texto, escrevia coisas para ela. Era ela na frente das câmeras e a gente aqui. Bate o susto, mas junto vem a força. Você perde o medo. Às vezes meus pais dizem pra eu moderar o modo de falar. Eu não vou maneirar. Não consigo. Por ela. Tem muita gente que não conseguimos identificar, se estão pro bem ou pro mal, se é oportunismo ou não.
Raça: Quais os conflitos e barreiras que hoje você enfrenta?
Anielle: O uso da imagem da Marielle para fins comerciais. As pessoas usam e não estão nem aí. Usam e dane-se. Há oportunismo por parte de diversas pessoas, principalmente brancas. A Marielle virou uma causa mundial. Mas pra quem? Quem grita, hoje, ‘Marielle vive, ‘Marielle presente’? Isso é um problema pra gente. É muito fácil estar aqui, dizendo que está na causa, mas por trás está sacaneando a família, roubando a família ou usando o nome para subir politicamente, midiaticamente, seja lá o que for. Hoje, pra gente, como se não bastasse o ódio das pessoas que não são de Esquerda, que confundem e é aquela coisa, ‘Marielle foi assassinada, foi eleita democraticamente, com mais de quarenta e seis mil votos, mas era preta, bissexual, favelada… ah, não! Essa daí é da família dela’. Como se não bastasse o ódio, que é gratuito com a gente, talvez não tanto com meus pais, mas eu já fui cuspida na rua, já recebi gritos, fui chamada de feminista de merda, esquerdista de merda, já fui ameaçada on-line por tentar defender a causa das mulheres negras. Quando a gente vai pra porrada pra discutir e falar, é defendendo isso. Talvez se a minha irmã fosse branca, não teria morrido. Pra gente é oportunismo. Pessoas querendo crescer politicamente em cima do nome dela. Midiaticamente, comercialmente. Marielle virou uma marca, uma logo. Tem gente que tenta legitimar o uso do nome Marielle prejudicando outra. Subestimando. Tem gente que não sabe que Marielle tem família, que Luiara existe. Talvez ficarão sabendo a partir destas fotos e desta entrevista.
Raça: De que maneira as pessoas poderão contribuir com o Instituto Marielle Franco?
Anielle: Somando. Estamos procurando várias pessoas que possam nos ajudar. Quando pensamos no Instituto, pensamos no seguinte: Temos uma adolescente, um pai e uma mãe desamparados, que precisam de apoio psicológico, emocional, profissional, apoio de qualquer coisa. E tem uma mãe solo que tem que trabalhar, dar conta da filha e dar conta deles. O Instituto dará conta dessas minorias. A ideia inicial com a Mari era dar formações políticas através da nossa história de vida porque nós somos da Maré, duas mulheres negras que saímos da Maré, mas trilhamos caminhos diferentes de muita gente ali. Eu, como professora, escuto muito minhas alunas negras dizendo que querem ser mulheres de bandidos ou só um contatinho. E não permitíamos isso. Começamos a fazer palestras, falar sobre isso. Eu saí da Maré para jogar vôlei nos Estados Unidos e me formei lá. A minha irmã saiu da Maré e se formou na PUC e chegou a vereadora. Como essas crianças crescem dentro da comunidade? Estamos começando desse ponto. Levar autoestima para as meninas negras das favelas, ter encontros com outras mulheres, principalmente as negras porque é a carne mais barata. Não deveria ser porque somos a maioria, é, ainda é uma maioria minimizada.
Raça: É leviano dizer que ‘Marielle presente’, ‘Marielle vive’, hoje tem um lado demagogo de quem faz uso incorreto disso? E qual seria a solução?
Anielle: Procede. Nossa alternativa é partir pra justiça. Registrar a marca, é assim que chamam, é ter o direito legal disso. É muito difícil pra gente, hoje, ver pessoas de punho cerrado dizendo ‘Marielle vive, Marielle presente’, mas que não têm caráter, que não sabem o que é ser uma mulher negra, não sabem o que é acolher família. Isso é difícil pra gente porque não crescemos assim. E é por isso que digo que a Marielle foi escolhida e foi morta porque ela fazia política diferente. Não tem ainda e não terá, pelo menos pelos próximos anos, quem faça política como a Marielle fazia. As pessoas confundem muito o que é cuidar, o que é a política com afeto. Ela não confundia, era do povo, ela era braços abertos, ia de peito aberto para qualquer lugar e nunca sequer desconfiou que poderia ser assassinada da maneira que foi. Estávamos fazendo planos para a quinta-feira seguinte, viajar no final do ano. Ela não suspeitava disso. É muito duro pra gente enquanto família. Mas vamos lutar contra isso. Eu peço muito que olhem para nós, a família da Marielle Franco. Muita gente está usando o nome dela para se promover. Nunca vimos na história uma mulher negra viver de fama de uma mulher branca assassinada. Mas estamos vendo o contrário hoje. Uma mulher branca vivendo de fama de uma mulher negra assassinada. Existem dois lados, mas as pessoas não querem escutar os dois lados. Quando começamos a falar, muitas vezes somos silenciados pela mídia branca. ‘É a parte raivosa! É a parte barraqueira!’ Não. Somos a parte que ninguém quer ouvir. A parte do sangue. Pretendo tocar o Instituto, cuidar da minha família. Preciso arrumar mais um emprego porque fui mandada embora por ser irmã da Marielle Franco… mesmo sendo formada em Letras e Jornalismo, ninguém quer saber, carrego uma marca: a irmã da Marielle. Temos que correr atrás, não estamos ganhando nada no nosso colo. A gente precisa lutar.
Raça: Anielle Franco entra para a política?
Anielle: Neste momento, não. Eu não sou oportunista. Se eu tivesse que ser, eu teria entrado nas últimas eleições, em outubro de 2018. Marielle estudou para estar ali, ela se preparou. Quero muito fazer política como eu sempre fiz, desde os meus 16 anos, morando fora. Nos Estados Unidos eu já participava de movimento negro, de mulheres negras. É como eu fazia com minha irmã: escrevendo, ajudando, militando. É muito leviano as pessoas falarem ‘Ela vem como cogovernadora, coprefeita, vereadora e tal’. Isso eu deixo para os oportunistas. Deixo para as pessoas que querem ganhar fama, ter vida fácil agora. Usar o nome Marielle em vez de ter sua própria carreira e trabalhar. Eu não quero surfar nessa onda, sei que isso um dia quebra. E não só isso. Acho que as pessoas continuam procurando uma substituta pra Marielle. Dizem que pareço com ela, sou a cara dela e devo seguir. Marielle enfrentou muita coisa. Ela chegava em casa chorando muitas vezes. Ela era política mesmo, desde pequena, na brincadeira de queimado na escola, nas brigas em casa, em tudo. Eu faço a minha política, que não é a parlamentar. Acreditava na política com a minha irmã. Eu votei, fiz campanha, fui cabo eleitoral, mas hoje me enoja. Ser candidata porque assassinaram a minha irmã, não é do meu caráter. Contudo, se eu mudar de ideia, será uma opção legítima.
A DOR DOS PAIS, MARINETE E ANTÔNIO
Raça: Um ano depois, como está a vida de vocês?
Marinete: Está muito difícil manter uma rotina. Não teria como ser diferente após um processo tão doloroso e brutal como o que aconteceu com a minha filha. É difícil levantar todos os dias com essa tristeza, essa dor profunda. Uma dor de mãe, como a minha, não é diferente da de outras mães que estão passando pela dor da perda. Mas a minha filha, pela mulher que ela era, pelo planejamento que teve aquela maldade. Houve um mentor, alguém que processou tudo aquilo intelectualmente. Isso é profundo ao coração de qualquer mãe. Isso tudo o que tem acontecido, além de mexer muito com toda a sociedade da maneira que foi, pra gente é muito mais difícil pelo que Marielle representava como filha, como mulher negra. Por toda criação que Marielle teve, o que me orgulha muito. Foi uma história de vida construída com muito sacrifício, muita luta, muita perseverança em todos os sentidos, tanto na criação para dar o básico de uma classe média pobre, somos católicos e acreditamos que não acaba aqui. Na nossa religião, chamamos esse momento que estamos passando de ‘deserto’. Parece o infinito. Um pesadelo que não tem como mensurar o que é realmente passar por uma situação dessa. É difícil.
Antônio: Depois do dia 14 de março de 2018 a nossa vida sofreu uma reviravolta muito grande. Depois do assassinato da Marielle, nosso dormir e acordar ficou muito difícil. Com o passar do tempo eu achei que ia melhorar, que poderia diminuir essa dor, essa falta. Faz um ano do assassinato covarde. Tocaiaram uma mulher que tinha sob seu poder apenas bolsa com batom, celular, apetrechos de mulheres, vaidosas como minha filha era. Ela prezava muito aquela beleza negra muito influente. Vivemos um dia após o outro. Sempre, em todos os momentos, todos os dias, sentimos a falta da Marielle. Uma coisa que nunca imaginei foi a capacidade dela chegar a tantas esferas da sociedade. Isso ameniza um pouco a nossa dor, porque pessoas de diversos segmentos têm feito manifestações de muito carinho.
Raça: Ao longo desses 12 meses vocês tiveram prós e contras. O que tem tirado vocês do eixo?
Antônio: O nome de Marielle já está perpetuado. Mas tem seres humanos que primam em tentar difamar. Acredito eu que, por não conhecer a fundo a família e não conhecer a fundo a própria Marielle. Ela sempre primou em defender o próximo. Algumas pessoas que falam algumas palavras querendo manchar o nome de Marielle não têm caráter, escondem-se através de mídias pra falar e tentar denegrir. Mas não vão conseguir porque a raiz de Marielle é muito profunda e isso não nos abala.
Marinete: Esses ataques que a gente recebe… estamos vendo que o Brasil é o país que mais se mata. Está se vivendo isso no mundo, mas aqui é com incidência muito maior. Minha filha era uma ativista, defensora dos direitos humanos, atuou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) por mais de dez anos. Infelizmente há quem não conheça e não queira conhecer o trabalho de Marielle. Quando dizem que minha filha defendia bandidos, é porque não conhecem ela. Marielle lutava pelo ser humano. Fico muito triste pelo desrespeito conosco, a família. Usam a imagem, seja o tempo que for, não temos o que comemorar. Teve muita comemoração, muito prêmio que Marielle recebeu que não fomos sequer comunicados, não estivemos presentes. As coisas não chegam pra gente como deveriam chegar. A Marielle tem essa família que vocês estão vendo aqui. Eu e meu marido temos 40 anos de casamento dentro da Maré. Marielle não chegou naquele parlamento de maneira à toa e nem vulgar. Chegou ali fazendo diferença, fazendo uma política diferente, e mesmo assim não chega de uma maneira qualquer. O trabalho de Marielle não começa naquele parlamento. Ela estava ali há um ano e pouco. O trabalho de base que a minha filha tinha é muito antigo. Marielle foi professora de pré-vestibular comunitário, foi uma liderança dentro da comunidade, foi catequista por vários anos, trabalhou em orla comunitária, teve toda a criação ali dentro, passando por todos os problemas que a gente enfrenta até hoje. Ela era mestre em Segurança Pública. Não é qualquer pessoa. A tese dela foi toda em cima de UPP. Um tema que foi e continua sendo polêmico. A periferia não aceitou. A votação de Marielle não a elegia. A votação de Marielle foi feita em outros segmentos, com pessoas de outro nível, não que na Maré não tenha. Lá tem níveis maravilhosos tanto que minha filha sai dali. O que elegeu minha filha foram todas as urnas. Em cada uma havia pelo menos um voto para Marielle. Ela fazia trabalho de base, comício doméstico nas casas das pessoas. Com ou sem o Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humano da Alerj, ela estava dando o recado e dizendo a que veio. Ela chegou com muita legitimidade ali. Minha filha teve 46.502 votos sem ter muito conhecimento. Nós contávamos com 10 mil votos para ela. Isso fez com que ela chegasse com muita garra naquele parlamento. Marielle chegou naquele parlamento branco, num sistema totalmente branco que incomodou. A gente sente em saber que toda essa trajetória de vida, infelizmente a maneira que eles encontraram para calar minha filha foi essa. Até porque ela era uma mulher do diálogo. Se as pessoas que tinham indiferença com ela fossem falar, Marielle resolveria de outra maneira. Quando vejo naquele parlamento um político dizer que Marielle dialogava com todos os partidos, eu vejo que aquela mulher realmente fez a diferença. Com toda a garra e legitimidade.
Raça: Como vive hoje a família de Marielle, emocional e financeiramente?
Antônio: Até pelo lado financeiro Marielle faz falta. Quando ela foi eleita e tomou posse, uma das metas dela era ajudar os pais. E ela nos ajudava. Então, com esse trágico acontecimento, nós ficamos órfãos. A ajuda que Marielle nos dava foi usurpada. Nós continuamos vivendo com as dificuldades de uma família de classe média pra baixo, como nós sempre vivemos, sempre lutamos. Sempre trabalhamos. A minha esposa, apesar de ser formada em Direito, teve época que trabalhou como diarista para que não faltasse nada para a Marielle e a irmã. Essas dificuldades continuam. Mas estamos vivendo.
Raça: Como é cuidar de Luiara?
Marinete: É uma tarefa que requer cuidados. Luiara sai de uma mãe de 38 anos, jovem, uma mãe que não tem nem como classificar, muitas vezes deu uma criação mais rígida que a minha. É toda uma reestruturação de família. Temos 67 anos, é toda uma mudança de vida, de história. A nossa meta hoje, a nossa prioridade é a Luiara. A Anni tem a filha dela, a vida dela. Hoje a gente lida com outra história de vida. Requer cuidado, atenção e dignidade que a Luiara precisa. Não é só aquele corpo físico da mãe dela que se foi. É toda uma história que tem que ser reconstruída. Eu voltei a ser mãe e ele ser pai. Não tem como esse emocional passar. Foi tão tosco, foi tão trágico… Agora é se reerguer, viver um dia após o outro. É fundamental que a gente tenha fé, é o que nos sustenta. Tenho que estar bem para passar pra ela. Moramos numa casa em que se chora muito, todos os dias. E não tem como ser diferente. Ultrapassa, transborda saber que foi tudo planejado. Imagine a cabeça dessa menina como é que fica. É uma luta para deixá-la bem, construir uma história de vida porque ela merece. Ajudá-la a andar com as próprias pernas não de qualquer maneira, mas de maneira decente. Era isso o que a mãe dela queria pra ela. Quando Marielle se separou, ela era pequena, tinha três anos, ficou na minha casa com Luiara até fazer dez. Até se casar de novo, em 2010. Essa formação de caráter ela teve na minha casa. Tenho muito orgulho em falar isso. Ela saiu lá de casa com todo o discernimento do que é certo ou errado. Agora ela volta, quando aconteceu tinha acabado de fazer 19 anos, é toda uma história que vai se reconstruir como família, como tudo o que a gente tem para oferecer pra que ela siga a vida dela. A gente não esperava por isso. É um processo lento, de muita dor. Tem dia que não dá vontade de levantar. Mas somos uma família de mulheres fortes, mulheres que fazem a diferença. Temos um histórico de superação. Precisamos continuar por ela e por todos nós.
Antônio: Dos quatro membros de nossa família, a Luiara foi quem mais sentiu. Foi muito atingida, preocupa-nos muito a situação dela. Uma jovem que muitas vezes se tranca no quarto, em algumas ocasiões a gente a encontra chorando. Ela perde a mãe aos 19 anos. Se para nós está sendo muito doído, às vezes quero me colocar no lugar de Luiara pra dimensionar a dor que ela sente. Pra mim foi e continua sendo difícil. Não sei até quando vamos ficar com essa dor. Eu sei que é utopia. Penso naquele sorriso lindo dela e acho que não aconteceu. Eu sei que aconteceu, mas não quero acreditar. Infelizmente aconteceu e continuamos sem entender. A minha filha não merecia o que aconteceu com ela.