80% das vítimas mortas pela polícia são negras
11 estados não divulgam dados completos; Estados alegam dificuldade de coleta por falta de obrigatoriedade do preenchimento do campo de raça nos boletins de ocorrência.
Onze estados brasileiros não coletam ou não divulgam informações completas sobre a raça das pessoas mortas por policiais no ano de 2021. Mesmo entre os que coletam e disponibilizam os dados, há vários casos de “raça não informada”.
Considerando apenas os casos em que a raça é divulgada, os números revelam que 81,5% dos mortos pelas polícias são negros.
É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo g1 dentro do Monitor da Violência, uma parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP.
O levantamento mostra que:
A raça de cerca de 2,5 mil das mais de 6,1 mil pessoas mortas pela polícia em 2021 não foi divulgada, ou seja, 41% do total
Entre os 3,6 mil casos em que a raça foi divulgada, porém, mais de 900 constam com a raça “não informada”
Das 2,7 mil vítimas para as quais há, de fato, a informação da raça, 2,2 mil são negras (81,5%)
Os pedidos foram feitos para as secretarias da Segurança Pública dos estados (e diretamente para as corporações em alguns casos) por meio da Lei de Acesso à Informação e das assessorias de imprensa. Foram solicitados os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa.
LEVANTAMENTO NACIONAL: Número de pessoas mortas pela polícia cai e atinge menor patamar em quatro anos; assassinatos de policiais também têm queda;
PÁGINA ESPECIAL: Mapa mostra mortes por policiais no país;
ANÁLISE DO FBSP: Polícias profissionais versus amadorismo fardado: uso de câmeras corporais deve pautar debate eleitoral sobre segurança pública;
ANÁLISE DO NEV-USP: Uso inadequado e abusivo de força letal: para cada policial morto, há 34 pessoas mortas por policiais no país;
METODOLOGIA: Monitor da Violência;
No total, mais de 6,1 mil pessoas foram mortas pela polícia em 2021 , uma queda de 4,5% em relação a 2020.
Onze estados, porém, não divulgam as mortes em confronto policial por raça de forma completa (de ambas as polícias), informação que também foi solicitada pelo g1. Também eram 11 no último levantamento, referente a 2020.
Falta de transparência e violência desproporcional
Segundo especialistas, os números disponíveis apontam que os negros são vítimas das polícias brasileiras de forma desproporcional.
“Negros permanecem como as principais vítimas de intervenções policiais que resultam em morte: se representam 56% da população, compõem 81,5% das vítimas da letalidade policial”, dizem Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ariadne Natal, Leonardo Ostronoff e Sergio Grossi, do NEV-USP, concordam. “[O número] indica que negros são mortos de maneira desproporcional, evidenciando o caráter racial deste tipo de ação, um reflexo do racismo estrutural onipresente na sociedade brasileira.”
“Existe uma concepção de que seríamos inferiores, perigosos e propensos à criminalidade”, diz Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP. “A partir disso, são construídos estereótipos em torno da figura do jovem negro periférico que faz com que as polícias, os seguranças privados e as pessoas comuns sejam mais propensas a praticar violência contra pessoas negras.”
Samira e Sérgio ainda lembram que a falta de transparência dos dados dificulta a percepção da realidade brasileira, que deve ser ainda mais desproporcional do que os números divulgados dão a entender.
“Este número, que já é grave, é possivelmente ainda maior, dada a baixa capacidade das polícias de prestarem informações sobre o perfil étnico-racial das vítimas. O estado da Bahia, que proporcionalmente tem o maior percentual de negros em sua população, é, por exemplo, um dos que não foi capaz de informar a raça/cor de seus mortos”, dizem.
Dificuldade de coleta e falta de obrigatoriedade
As justificativas para a não divulgação dos dados sobre as raças das vítimas são diversas. Segundo o governo de Mato Grosso, por exemplo, “a disponibilização de dados desagregados por raça/cor fica prejudicado devido a ser um campo não obrigatório no preenchimento do boletim de ocorrência”.
Mato Grosso do Sul, outro estado que não informou os números, também afirma que estas informações não são catalogadas no boletim de ocorrência. Ou seja: os dados não existem.
Já Minas Gerais informa que, “conforme o Art. 16, Inc. III do decreto 45969/2012, não serão atendidos pedidos que exijam trabalhos adicionais de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações, ou serviços de produção ou tratamento de dados que não seja de competência do órgão ou entidade”.
Segundo Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP, a falta de dados e as respostas fornecidas pelos estados explicitam uma má vontade institucional e uma percepção de que racismo não é um problema.
“Não entendem o racismo como uma questão central para discutir política pública. Isso gera um cenário em que temos políticas públicas que são capazes de reduzir a letalidade contra a população branca, mas não contra a negra”, diz Pacheco.
Através de dados específicos não apenas sobre raça, mas também sobre idade, fatores econômicos e territoriais, é possível fazer políticas públicas focalizadas, segundo o pesquisador.