A onda das BETs e a urgência da educação financeira no Brasil
Como a popularidade dos jogos de apostas virtuais expõe a necessidade de Consumo Consciente e transformação na educação financeira.
Quem passou dos quarenta anos sabe o que foram os anos áureos das casas de bingos, jogo do bicho, almanaques de figurinhas que trocavam por prêmios, concursos, sorteios, rifas, entre outros jogos que sempre movimentaram o mercado de apostas no Brasil. Do mais estruturado e regulamentado ao informal e popular jogo, o fato é que jogos de azar sempre foram um tema existente e presente na maioria dos centros e periferias do país, passando despercebidos sobre o que realmente significam em matéria de vício, dependência socioemocional e risco para a economia pessoal dos brasileiros.
O recreativo inocente que pende para o nocivo é a linha tênue de qualquer jogo, e é fato que proibir nunca será a solução para melhorarmos comportamentos para um nível de consumo mais consciente, mas sim o investimento em educação.
Em uma passagem muito marcante no conto “A igreja do Diabo” de Machado de Assis, há a seguinte frase: “Notou o Diabo que o que os homens mais estimam e desejam é exatamente aquilo que lhes é vedado.” Trabalhar a natureza humana de fazer o que é proibido, evidencia como a transgressão pode ser estimulada pela imposição de restrições.
O aumento da popularidade dos jogos virtuais não é novo. De fato, o advento da internet e das redes sociais carrega essa oportunidade de oferta há muitos anos. O jogo do bicho, por exemplo, foi criado no século 19 como entretenimento e atração de um jardim zoológico, mas evoluiu ao longo de décadas para atrair o ganho financeiro como principal chamariz.
Dentro deste contexto histórico, atualmente o surgimento das BETs tem trazido à tona uma preocupação crescente com o risco de endividamento da população brasileira. Esses jogos, que oferecem a promessa de ganhos rápidos e fáceis, atraem a atenção das pessoas que majoritariamente acabam sucumbindo à tentação de apostar mais do que podem, tendo um grande facilitador, o próprio celular. Uma recente pesquisa do Banco Itaú, lançada nesta semana, revela que o número de brasileiros que aderem a esse tipo de jogo tem crescido significativamente, assim como a quantidade de pessoas que enfrentam dificuldades financeiras devido às perdas acumuladas. Esse cenário demonstra a necessidade de falarmos sobre um consumo mais consciente, pautado em uma educação financeira gradativa e sólida que possibilite a prevenção do endividamento e melhor qualidade de vida para as pessoas.
No contexto dos jogos de apostas, o consumo consciente se torna uma ferramenta essencial para ajudar as pessoas a reconhecerem os riscos associados a esse tipo de entretenimento em primeiro nível, mas com risco de dependência e prejuízos individuais e coletivos.
Apostar sem uma compreensão clara das consequências pode levar a um ciclo vicioso de perdas e dívidas, que compromete a saúde financeira e mental dos indivíduos. Além disso, potencializados por influenciadores, como apresentadores, cantores, atletas, entre outros, a adesão a esses jogos pode ser vista como parte de uma cultura de consumo imediatista e de sucesso, onde o ganho instantâneo se sobrepõe à reflexão sobre os impactos de longo prazo.
O grande geógrafo e pensador Milton Santos em “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal” oferece uma perspectiva valiosa para entender o fenômeno das BETs em um contexto mais amplo. Apesar de em seu tempo Santos não ter vivido a realidade das BETs, sua teoria argumenta que vivemos em um mundo dividido em pelo menos três esferas: o primeiro mundo, da globalização como fábula, onde o consumo é exaltado e os perigos são minimizados; o segundo mundo, da globalização como perversidade, onde as desigualdades e injustiças são exacerbadas; e o terceiro mundo, da globalização como possibilidade, onde a consciência crítica e a solidariedade podem transformar a realidade. No caso dos jogos de apostas, podemos ver como esses três mundos coexistem: a fábula dos ganhos fáceis e rápidos que alimenta o vício, a perversidade das dívidas e crises financeiras que afetam principalmente os mais vulneráveis, e a possibilidade de uma nova abordagem que promova a educação e a conscientização para evitar esses riscos.
Miriam Leitão, em “Saga Brasileira: A longa luta de um povo por sua moeda”, destaca a importância da educação financeira como uma ferramenta de emancipação. Ela argumenta que a falta de conhecimento sobre finanças pessoais é um dos principais fatores que contribuem para o endividamento crônico da população. A história econômica brasileira, marcada por crises e instabilidades, reforça a necessidade de uma educação financeira que capacite os indivíduos a gerirem seus recursos de forma eficiente, a evitar armadilhas de endividamento e a construir um futuro mais seguro e sustentável.
A correlação entre o risco de endividamento associado aos jogos de apostas e o consumo consciente, revela a urgência de se repensar as práticas de consumo e de se fortalecer a educação financeira como um pilar fundamental para o desenvolvimento sustentável.
A educação financeira não deve ser vista apenas como um conjunto de técnicas para gerir dinheiro, mas como um processo de conscientização que capacita os indivíduos a fazerem escolhas mais responsáveis, a resistirem às pressões do consumo efêmero e a buscarem uma vida mais equilibrada e significativa. Consumindo com o melhor impacto para si e para os outros.
Nesse sentido, é fundamental que a sociedade, principalmente governo e empresas invistam na educação que aborde não apenas os aspectos técnicos das finanças pessoais, mas também as implicações éticas e sociais das escolhas de consumo. Em uma era em que crianças têm livre acesso a celulares e a jogos que gamificam, cumprem tarefas e dão reconhecimento, falar de educação financeira não pode estar focado apenas na vida adulta e no dinheiro, uma vez que os comportamentos de consumo são endereçados durante a infância e adolescência.
A reflexão sobre os riscos associados aos jogos de apostas virtuais, nos direciona à necessidade de uma transformação profunda na maneira como lidamos com o consumo e as finanças.