Crianças negras aprendem desde cedo, a custo alto, a driblar o racismo
O racismo causa danos profundos em todas as fases da vida, mas na infância seus efeitos parecem ser ainda mais devastadores, a ponto de muitas vezes passarem despercebidos ou sem tratamento adequado. Com 46 anos e em terapia há algum tempo, sempre tive dificuldade em recordar minha infância. Por muito tempo, pensei que essa dificuldade não fosse relevante, mas agora percebo que ela esconde o medo de confrontar os traumas causados pelo racismo, especialmente na primeira década da minha vida.
Quando me esforço, consigo lembrar de ser uma criança feliz e falante, que adorava brincar de boneca, pentear e maquiar cada uma delas. Brincava sozinha, com minha irmã e com a prima que morava no mesmo quintal. Meus pais sempre elogiavam meus olhos, e eu era tratada como uma princesa, apesar das dificuldades financeiras. Minha mãe costurava vestidos rodados e coloridos, que me entretiam por horas. No entanto, essa menininha de cabelo black power tinha uma dupla personalidade: fora daquele quintal, era uma pessoa completamente diferente.
Na escola, durante os anos iniciais, tinha poucos amigos. Quase não brincava no intervalo e evitava participar de atividades e festividades, como a festa junina. Hoje, entendo que essa personalidade introspectiva era uma armadura para sobreviver em um ambiente escolar cruel e racista. Lembro de dois episódios marcantes. No primeiro, estava no segundo ano, e minha mãe havia feito trancinhas soltas no meu cabelo no fim de semana. Adorei o penteado e fui à escola, na segunda-feira, cheia de orgulho. Voltei para casa arrasada, pois naquele dia ganhei o apelido de medusa. Não olhe para ela, senão você vai virar pedra. Isso me isolou ainda mais.
Em outro episódio, um pouco mais velha, não lembro exatamente em qual série estava, mas já era após a separação dos meus pais. Eu ia para a escola com uma trança grossa que cobria toda a cabeça e ia até depois dos meus ombros. Um dia, uma colega perguntou por que eu sempre usava o cabelo daquela maneira. Mais confiante, devolvi a pergunta e indaguei por que ela sempre deixava o cabelo dela solto. Eu costumava afirmar que não gostava de festa junina, mas, na verdade, isso era uma forma de me proteger, já que sabia que não teria um par para dançar a quadrilha e que meu nome jamais seria cogitado para ser a noivinha da festa ou a rainha do baile.
Em todas essas situações, mesmo tentando disfarçar, saía machucada e sem entender os motivos de receber aquele tratamento diferenciado. Anos depois, consegui nomear o que vivenciava: o racismo. Crianças negras são forçadas a antecipar o sofrimento e as dores causadas pelo racismo, mesmo que, na maioria das vezes, demorem a compreender este fenômeno. Se, por um lado, se tornam resilientes, por outro, não vivem plenamente a infância e a juventude. Por isso, neste mês em que celebramos as crianças, faço um apelo pelo seu bem-viver, livre de racismo.
Rachel Quintiliano é jornalista, promotora dos direitos humanos e da equidade de gênero e raça. Escreve sobre identidade, autoestima, livros, filmes e séries. É autora do livro Negra Percepção: Sobre Mim e Nós na Pandemia.