Um banho de mangueira para lavar a alma

Sem dúvida, o ano de 2023 foi o mais difícil da minha vida e também aquele em que tive múltiplas provas de que o amor existe e que coisas simples, como um banho de mangueira, em um dia de calor insuportável, podem ter muita relevância.

Essa história é piegas, como muitas outras de superação, compaixão e amor e não há nada de errado nisso, até porque esta coluna já se prestou a isso, mais de uma vez, desde que passeio por aqui.

Logo após o meu aniversário, no final do mês de fevereiro, recebi o diagnóstico de um câncer de mama. Foi um choque porque mesmo não tendo medo de morrer, tenho pavor de ficar gravemente doente, jogada em uma cama de hospital.

Eu, que sempre usufrui de boa saúde, agora estava sendo revirada, furada, escaneada, radiografada como nunca tinha imaginado ser. Todas as pessoas que me atenderam naquele período foram extremamente profissionais e ofertaram um atendimento humanizado, mas depois de um dia inteiro de exames, o choro veio forte – foi o segundo após ler o diagnóstico. Era uma dor da alma, uma dor nova para mim.

Foi preciso me concentrar e agir com pragmatismo para dar conta de entender o que de fato estava acontecendo e tomar todas as medidas que tivessem ao meu alcance para enfrentar a doença e seguir com um tratamento rígido.

Os dois primeiros meses, foram a medida do que estava por vir e apesar de o caso ser sério, que indicava um câncer triplo negativo (na minha interpretação, aquele tipo de doença que se alimenta de luz e tem vida própria – incontrolável), o diagnóstico precoce, o acesso a um serviço de saúde de referência e uma rede de amigos e familiares, construíram um ambiente de acolhimento e que eu não imaginava dispor.

Continuo longe da cura, mas posso garantir que esses fatores me aproximaram dela, ainda mais, depois que soube que um médico negro, nos Estados Unidos, preocupado com a capacidade de as mulheres pobres, negras e sem seguro de saúde responderem positivamente a um tratamento de câncer, inventou o “serviço de navegação” em hospitais. É preciso fazer uma pausa nesta minha história pessoal para explicar o que é isso.

O médico Harold P. Freeman percebeu que as pacientes pobres e sem seguro enfrentam maior dificuldade em dar respostas positivas a tratamentos de saúde do que outros grupos daquela sociedade. Esse obstáculo estava relacionado à dificuldade de navegar pelo sistema de saúde. Como as mulheres negras são constantemente discriminadas, evitavam pedir informação, ajuda, para fazer exames e até mesmo seguir com o tratamento, depois do diagnóstico realizado.

Diante desta realidade, o médico desenvolveu um sistema de atendimento multidisciplinar, chamado “navegação”, onde a equipe de saúde acompanha toda a jornada do paciente, apoiando em todos os processos, desde aqueles relacionados à informação até o tratamento e a cura. A metodologia foi reconhecida nos Estados Unidos, em 2005, quando o então presidente da república daquele país, assinou a lei: Patient Navigator Chronic Disease Prevention Act.

Voltando para a minha história, acho que esse meu medo exagerado de ficar doente tem uma relação direta com o estereótipo de mulher negra, guerreira, forte e inabalável que ora me serve e me dá força para seguir em frente, ora me aprisiona e impede que eu busque ajuda, até mesmo com coisas simples. Enxergar isso com nitidez, talvez tenha sido a coisa sobre que mais aprendi nesses meses enquanto ainda estou tentando vencer o câncer.

Aprendi que pedir e receber ajuda não diminui minha autonomia, que ficar sozinha pensando na vida não é procrastinar, que um almoço em família, uma viagem de poucos dias e para um lugar próximo, montar uma árvore de Natal, tomar um banho de mangueira em um dia de calor podem lavar a alma, assim como tantas outras coisas simples, são fundamentais para enfrentar os momentos de altos e baixos que a doença proporciona.

Para minha sorte, esse aprendizado foi leve e com pitadas generosas de amor capazes, inclusive, de me incentivar a avançar com o projeto de publicação do meu primeiro livro totalmente autoral, “Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia” e, tantas outras iniciativas individuais e coletivas que coloquei em curso durante todo o ano de 2023.

Minhas amigas e amigos, patrícias e patrícios de cor, que 2024 seja ainda mais generoso para mim e para vocês.

Rachel Quintiliano é jornalista, pós-graduada em comunicação e saúde, defensora dos direitos humanos e promotora da equidade de gênero e raça. Escreve sobre identidade, autoestima, livros, filmes e séries.

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