Entra em cena o desafio da maquiagem no tom certo
Eu sou, de fato, a louca da maquiagem. Desde muito jovem, o universo da maquiagem me fascina. Não faço ideia da quantidade de produtos que tenho em casa, na nécessaire, no trabalho, em uma gaveta aqui ou acolá.
Quando eu era criança, minha tia Sulamita, que morava nos Estados Unidos, veio nos visitar e trouxe um kit enorme de maquiagem para a minha outra tia. Para mim, ela trouxe uma boneca Barbie que só tinha o tronco e a cabeça – uma versão para maquiar e pentear. Amei! A coitada da boneca ficou desfigurada com a quantidade de produtos que eu passava nela. Lápis de cor e canetas coloridas eram frequentes no rosto da boneca. Mas enquanto brincava com o meu presente, não tirava o olho do kit de maquiagem que minha tia tinha ganhado. Sonhei com ele por mais de 10 anos.
Muito mais tarde, com mais de 20 anos e morando sozinha, fui finalmente presenteada. Minha tia, mais uma vez em visita ao Brasil, trouxe o meu sonhado kit de maquiagem. Chorei feito criança. Era igualzinho ao que ele presenteou minha outra tia. Havia uma infinidade de sombras, blushes, batons e um pequeno estojo vazio onde eu poderia montar um pequeno kit para carregar na bolsa. Só havia um problema: não vinha com base.
A base sempre foi e ainda é um desafio para quem tem pele negra. Quando ganhei o meu sonhado kit e passei a explorar com mais possibilidades o mundo da maquiagem, deparei-me com esse obstáculo.
No início dos anos 2000, as poucas marcas que tinham maquiagem para pele negra eram muito caras, importadas e não disponibilizavam toda a coleção no Brasil. Eu gostava muito da Revion, mas, nem sempre encontrava a minha cor. As marcas, de fato, enxergavam o Brasil como um país de pessoas brancas. Cansei de sair muito escura, cinza ou muito branca nas fotos. Levei anos para entender qual era o subtom da minha pele.
Quando finalmente encontrei a base no tom certo – no meu caso, com fundo amarelado – surgiu também a febre do pó translúcido. Vocês não fazem ideia… ou talvez façam. Naquele período eu saí, em todas as fotos, com cara de Gasparzinho (o fantasminha do desenho animado). A make estava linda de perto, super mate, confortável, mas, bastava um flash para que eu ficasse com o rosto completamente branco.
Hoje, algumas marcas lançaram esse mesmo pó translúcido amarelado, dourado e marrom. Muito mais adequado para a pele negra.
Essa questão do pó translúcido me fez pensar no quanto deve ser difícil preparar uma maquiagem para entrar em cena, especialmente quando estamos falando de teatro. A luz é intensa, o personagem está a uma distância considerável do público e a make precisa ser um suporte para o personagem.
Alguns profissionais do ramo me contaram que, em produções menores, os artistas fazem sua própria maquiagem para entrar em cena. Profissional à disposição, somente em grandes musicais.
Imagine como isso deve ser difícil para artistas negros e negras… até porque, para o teatro, a maquiagem necessita ser mais pesada, olhos e sobrancelhas mais marcados. As cores realmente têm que aparecer e o contorno do rosto também.
Além disso, existe o desafio de não derreter, devido a luz intensa que fica sob personagens. Por isso a maquiagem, geralmente, é a prova d’água. Imagine o resultado desastroso de uma base inadequada para a pele negra nesse contexto?
As marcas avançaram, entenderam que o público negro é consumidor desses produtos e lançaram paletas mais variadas. Empreendedores negros e negras também decidiram disputar o mercado. A Muene Cosméticos se mantém firme e forte nessa proposta há mais de 20 anos, a Negra Rosa chegou há pouco mais de três anos mostrando a que veio, ao lançar uma coleção de bases e outros produtos específicos para a pele negra. Mas, ainda existe muito caminho a percorrer quando o assunto é beleza, identidade e autoestima das pessoas negras no Brasil.
RACHEL QUINTILIANO é jornalista, pós-graduada em comunicação e saúde, consultora na área de comunicação, planejamento e sistematização com foco em saude, género e raça. Foz sócia da iniciativa Nina Cosméticos, especializada em produtos de beleza para pessoas negras.