Revista Raça Brasil

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Eliane Pereira

Colonialidade da fé e racismo religioso: quando o Estado apaga os saberes ancestrais

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Juristas Negras

O Instituto Juristas Negras é uma coletiva de mulheres negras integrantes do Sistema de Justiça, que buscam ampliar os horizontes sobre Direito e Justiça, a partir da afirmação da negritude, da história, cultura e contribuições do povo negro para a formação do Brasil, numa perspectiva decolonial.

O Rio de Janeiro continua lindo? Depende da lente. Na cidade que escolhe para quem será maravilhosa, assistimos a um episódio recente de racismo institucional e religioso como mais uma de suas facetas.

A resolução que reconhecia práticas tradicionais de matriz africana como complementares ao SUS, no Rio de Janeiro, foi revogada pelo prefeito, após poucos dias de sua publicação, sob a alegação de laicidade do estado, onde crenças religiosas e políticas públicas não deveriam se misturar. Estamos falando de banhos de ervas, defumações, consultas com benzedeiras. Importante destacar que a resolução não substituía a medicina tradicional tampouco obrigava o(a) paciente a se submeter a qualquer procedimento que não fosse consentido. Representava, sim, o reconhecimento terapêutico positivo dessas práticas e um avanço contra o processo de marginalização e criminalização das religiões de matriz africana. 

A atitude do poder público da cidade do Rio de Janeiro evidencia o que podemos chamar de colonialidade da fé. Uma prática que opera como um pilar fundamental na manutenção das hierarquias raciais e epistemológicas herdadas do colonialismo. 

Esse fenômeno não se restringe ao âmbito simbólico ou cultural, ele tem desdobramentos concretos na violência contra praticantes de religiões como o Candomblé, a Umbanda e a Jurema; na conivência institucional com a intolerância religiosa.

Terreiros enfrentam obstáculos burocráticos para funcionar legalmente, sendo frequentemente alvo de sanções ambientais e fiscais desproporcionais, o que não costuma ocorrer com segmentos religiosos hegemônicos. Essa desigualdade também se reflete nas decisões judiciais, por meio das quais crimes de intolerância religiosa são muitas vezes classificados como meros conflitos interpessoais ou entre vizinhos e, ainda, como atos de vandalismo, ignorando o racismo estrutural subjacente a tais práticas. Nas palavras de Rosa Amelia Plumelle Uribe, a situação de impunidade beneficia os crimes cometidos pela supremacia branca.

O colonialismo da fé estruturou uma lógica binária que opõe o “sagrado” europeu ao “profano”, “diabólico” africano, fomentando narrativas de inferiorização das práticas religiosas de matriz africana. Nesse contexto, o corpo negro se torna um campo de disputa espiritual e política. 

A demonização das religiões afro-brasileiras não é apenas um ataque à fé, mas um ataque à existência e à identidade negra. O que está em jogo não é somente a liberdade religiosa, mas a permanência e o reconhecimento de um sistema de saberes ancestrais que resiste ao apagamento colonial. Nesse sentido, combater o racismo religioso implica desmantelar o preconceito e a própria lógica colonial que hierarquiza crenças, corpos e saberes considerados “não universais”.

O enfrentamento ao racismo religioso não pode ser dissociado da luta contra a colonialidade do poder, do saber e do ser. Desafiar essa estrutura exige uma resposta jurídica contundente, políticas públicas eficazes e, sobretudo, a afirmação das espiritualidades negras como territórios legítimos de resistência e pertencimento. 

O Instituto Juristas Negras, que vem atuando em incidências internacionais a respeito do racismo religioso, aponta que, apesar da evolução legislativa voltada para o enfrentamento ao racismo como crime, não há efetividade na aplicação da lei, uma vez que as normas direcionadas à proteção do povo negro e à sua religiosidade, historicamente, não são cumpridas. Desse modo, o acesso a direitos e à efetiva proteção do Estado ainda é limitado pela persistência do racismo estrutural, que impede a aplicação adequada das leis e políticas públicas. 

Neste sentido, o combate ao racismo religioso no Brasil exige um compromisso real do Estado e da sociedade. Não basta reconhecê-lo como um problema, é necessário agir para desmantelar a estrutura que sustenta essa perseguição, o que requer revisar o passado escravocrata para que não se repitam as atrocidades do domínio colonial, que têm a subjugação e desumanização de um povo como o início de um genocídio. 

Lembrando a importante fala de Martin Luther King Jr., não apenas o grito dos maus deve nos preocupar, mas também o silêncio dos bons. É preciso que o poder público, as lideranças religiosas e a sociedade brasileira não silenciem diante do racismo religioso e adotem o respeito inter-religioso como caminho para a efetiva garantia da igual liberdade religiosa.

Ver a sapucaí sacudindo com sambas enredos que exaltam a cultura negra é bonito. Mas o que queremos mesmo são políticas públicas que concretizem  o bem-viver e as garantias constitucionais da população afrodescendente no Brasil. 

Eliane Pereira da Silva, advogada, diretora administrativa do Instituto Juristas Negras, especialista em compliance, integridade, administração pública, mestranda em políticas públicas pela UFRJ.

[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].

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