Paulo Miguez é atualmente reitor da Universidade Federal da Bahia.
Passou 11 anos, em atividade militante internacionalista, como um cooperante na Revolução Moçambicana.
Cooperante, como eram chamados os tantos estrangeiros dispostos a ajudar no processo de afirmação do governo pós-independência, no caso de Moçambique, depois de 1975.
Viveu lado a lado com o grande Samora Machel, principal líder do processo de independência depois do assassinato de Eduardo Mondlane.
Samora Machel morrera em acidente aéreo, certamente provocado por inimigos, em 19 de outubro de 1986.
Com o presidente, Miguez aprendeu muito.
Uma das lições: não dar quaisquer brechas ao racismo.
Era um inveterado antirracista, Samora Machel.
Como todas as grandes lideranças de esquerda naquele período, na África Austral.
Samora Machel era contra qualquer espécie de racismo.
Qualquer.
E em Moçambique, o racismo então apareceu de uma forma singular, afetando a luta pela afirmação da independência.
Miguez participou de inúmeros comícios em Maputo, a capital moçambicana, antiga Lourenço Marques.
De um deles, recorda-se como se fosse ontem.
O mais impactante.
Valho-me de depoimento dele sobre tal comício, tipicamente antirracista.
Um antirracismo a descartar a cor da pele como elemento essencial.
Um típico não a qualquer colorismo.
A nos ensinar muito nos dias atuais.
Estava, Samora Machel, a ouvir aqui e ali, lá e acolá, muxoxos em relação a alguns ministros dele.
Por brancos.
Dos tantos comícios, o mais simbólico, de maior força política, de maior significado ideológico e cultural, a acompanhar Miguez pelo resto da vida, aquele, contra o racismo.
Restou tatuado nele, na alma.
Moçambique, país a lutar pela libertação da opressão colonial.
Chegara até ali graças à unidade do povo e das diversas forças políticas.
Unidade, a pedra de toque daquela luta.
O presidente percebeu: o racismo ressurgia.
Isso corroía por dentro o esforço da unidade nacional.
Contaminava, prejudicava a luta política.
Dificultava a unidade.
Determinado a enfrentar o racismo naquele dia, naquele comício, subiu ao palanque disposto a afrontar quem quer que fosse.
Encarar de frente o monstro racista, cuja face ia novamente se insinuando na luta política moçambicana.
Inicia o discurso, como se nada de especial quisesse.
Súbito, começa a chamar um a um, dirigentes da FRELIMO.
Chamar ministros.
Não negros.
Apresenta-os à multidão.
Sérgio Vieira, “Caneco”, descendentes de goeses, coronel das Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM), ministro da Agricultura, primeiro a ser chamado.
Didaticamente, pela história de cada um, confronta o racismo:
_ Este camarada fugiu ainda muito jovem para se juntar à luta de libertação.
_ E agora?
_ Por que não é negro, não pode ser ministro?
A multidão, em silêncio.
Respeito pelo líder, cujo carisma era inegável, e impressionante.
Chama outro.
Branco.
Major-general Jacinto Veloso.
Ex-oficial do Exército colonial.
Samora confronta, adivinhando alguma inquietação em uma ou outra cabeça:
_ Este fugiu com um avião militar português e se somou a Revolução.
Segue afrontando pensamentos racistas:
_ E ele?
_ Vai ser desqualificado pela cor da pele?
_ Por que é branco não pode ser dirigente da FRELIMO?
_ Não pode ser ministro?
Chamou mais.
Depois outro, e mais outro.
Brancos.
E arrematou:
_ Aqui não há pretos, não há brancos, não há indianos, não há muçulmanos, não há mestiços.
_ Aqui há moçambicanos!
_ Isso é o que interessa.
_ Foi assim, com moçambicanos de armas nas mãos que conquistamos a independência.
E sacudiu a multidão, com essa reflexão, com essa pergunta:
_ Esqueceram que os que destroem nossas infraestruturas e nossas machambas, incendeiam os postos de saúde, as escolas, as cooperativas, lojas, os que sequestram nossas mulheres e crianças, esqueceram que eles são pretos?
_ Esqueceram que eles são pretos?
_ Os que nos movem esta guerra injusta, que atrasa e empobrece nosso povo, guerra de racistas e opressões, não são pretos?
_ Estão a ver: são pretos!
_ E os que vamos vencer esta guerra, mais essa guerra, são moçambicanos.
_ Somos nós!
Não, a luta política, a luta pela independência, a luta pela liberdade não podia se prender à cor da pele.
Aos lutadores por uma nova Moçambique interessavam as convicções políticas, a dedicação às causas mais nobres do povo moçambicano, naquele momento unir todos contra a guerra civil insuflada e financiada pela África do Sul e no meio daquele cenário procurar afirmar a independência na perspectiva socialista.
O hoje reitor levou a lição pelo resto da vida.
[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].