Em entrevista exclusiva à Revista Raça, arquiteto baiano reflete sobre a invisibilidade no setor, a urgência da reparação e os caminhos da arquitetura decolonial no país
“Durante a faculdade, eu era um dos poucos estudantes negros no curso de arquitetura. Ao me formar, essa solidão se repetia nos eventos, nas rodas de conversa, nos espaços de visibilidade. Quanto mais eu subia, mais distante ficava de encontrar semelhantes.”
O relato é do arquiteto João Gabriel, nascido no interior da Bahia, e reflete uma realidade comum a muitos profissionais negros que transitam por áreas historicamente elitizadas. Em conversa exclusiva com o Portal da Raça, ele detalha como a ausência de pares, referências e políticas de equidade moldou sua trajetória e fortaleceu o desejo de transformar a arquitetura em uma ferramenta de inclusão e justiça social.
Para João, a criação da Sala Preta — primeira mentoria profissional gratuita voltada a arquitetos negros no Brasil — foi um desdobramento natural de uma vivência marcada por barreiras estruturais. “Quando minha carreira deu uma reviravolta no início de 2024 e passei a conquistar reconhecimento nacional, entendi que era o momento de fazer algo para tentar mudar essa dinâmica”, afirma. A iniciativa tem como objetivo inserir jovens profissionais negros no mercado de maneira mais sólida, a partir da troca de experiências e formação prática.
Atualmente, João também participa de pautas junto ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), buscando expor a disparidade racial no setor. “Foi apenas em 2022 que o Conselho passou a incluir o quesito raça nos seus formulários, e só recentemente esses dados começaram a ser divulgados”, aponta. Segundo o último censo do Conselho, apenas 22% dos profissionais se autodeclaram negros — número que ele considera “extremamente preocupante” em um país de maioria negra.
Mas os dados não mostram tudo: “Esse número, que já é alarmante, não contempla quem sequer conseguiu se manter vinculado ao Conselho. Muitos arquitetos e arquitetas negros enfrentam dificuldades financeiras logo após a graduação e acabam não conseguindo arcar com os custos de registro profissional.”
Para além dos números, ele também defende a inserção de temas como arquitetura hostil e reparação histórica nas discussões institucionais. “A arquitetura hostil está ligada a uma lógica de exclusão. Mas antes de falar disso, precisamos falar de reparação. Precisamos reconhecer que a arquitetura foi historicamente cúmplice na marginalização de corpos negros, indígenas e periféricos.”
Arquitetura negra e decolonial: uma prática política

João Gabriel propõe uma distinção importante entre a chamada arquitetura negra e a arquitetura decolonial. “Chamo de arquitetura negra aquela que é feita por nós. Não só as que carregam marcas e símbolos da cultura negra e da diáspora, mas também aquelas que, com o tempo, foram entrando no nosso jeito de fazer e pensar arquitetura.”
Já a arquitetura decolonial seria aquela que rompe com os padrões europeus impostos pela colonização, oferecendo alternativas enraizadas na vivência coletiva de povos africanos, indígenas, ribeirinhos e quilombolas. “Na faculdade, quase tudo que aprendemos vem de uma visão branca e europeia. São raras as vezes em que nos apresentam outros jeitos de construir. Mesmo quando falam sobre arquitetura brasileira, quase nunca nos fazem entender que nossas cidades foram erguidas com o trabalho de pessoas negras escravizadas.”
“Mais do que estética, a arquitetura negra é uma prática com sentido social, político e afetivo.”
Entre suas inspirações, ele menciona desde ícones apagados pela historiografia oficial até protagonistas contemporâneos. Na Casacor, escolheu homenagear Gilberto Gil como símbolo de negritude viva. Também se debruçou sobre a história do mestre Tebas — considerado o primeiro arquiteto negro do Brasil. “Quanto mais leio sobre ele, mais entendo o quanto da nossa história foi apagada.”
Entre os nomes atuais, cita Gabriela de Matos, Francis Kéré, Alexandre Salles, Ester Carro, Pedro Rubens e Victor Martins, além de docentes como Cláudia Alcantara e Audrey Caroline.