Nas últimas décadas, capitais brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador têm vivenciado um avanço preocupante da especulação imobiliária. A aquisição estratégica de terrenos e imóveis, motivada pela expectativa de valorização, tem transformado o solo urbano em mercadoria, muitas vezes deixando imóveis desocupados por longos períodos à espera de retorno financeiro. Esse movimento, longe de ser neutro, tem implicado diretamente na expulsão silenciosa de milhares de pessoas dos centros urbanos e regiões historicamente populares.
Dados do Censo de 2022 mostram que mais de 20% dos domicílios brasileiros são alugados, o que corresponde a mais de 11 milhões de moradias. Em paralelo, o preço dos aluguéis aumentou vertiginosamente nos últimos anos. Entre 2020 e 2021, durante a pandemia, o índice IGP-M — usado como referência para reajustes de contratos — chegou a ultrapassar os 30%, pressionando famílias que já enfrentavam perda de renda. Esse descompasso entre custo de moradia e renda média, somado ao crescimento de um mercado voltado a investidores e não a moradores, tem empurrado populações menos privilegiadas para as periferias, muitas vezes sem acesso adequado a transporte, saúde, educação e lazer.
Esse processo não ocorre por acaso. Como alertava Milton Santos, a cidade é o reflexo da lógica do capital e a urbanização contemporânea, segundo o geógrafo, transforma o território em um “capital fixo”, onde a valorização dos espaços se dá em função de infraestruturas criadas não para a coletividade, mas para os interesses de corporações e grupos privados. Essa fragmentação espacial produz áreas “luminosas”, bem servidas, caras e cobiçadas, e outras “opacas”, onde habitam os que foram progressivamente excluídos do acesso à cidade. A renda da terra se sobrepõe à vida cotidiana, e o direito à moradia digna é substituído pela lógica da rentabilidade.
Um novo componente vem agravando esse cenário: a digitalização da especulação. Plataformas de locação por temporada, vêm alterando profundamente o mercado habitacional onde, regiões antes ocupadas por moradores fixos, hoje abrigam imóveis voltados exclusivamente para turistas e locações de curta duração. Em bairros de São Paulo e Rio de Janeiro, o aumento da procura por imóveis para aluguel temporário retirou de circulação unidades que poderiam atender famílias em busca de moradia estável. Estudos mostram que em cidades como Paris, Roma e Barcelona, a proliferação desse modelo contribuiu diretamente para a escassez de moradias acessíveis — e o Brasil segue a mesma tendência.
Esse encarecimento da moradia não apenas expulsa, mas compromete o poder de compra e a qualidade de vida, pois, com grande parte da renda comprometida com aluguel e transporte, sobra pouco para alimentação saudável, educação, lazer ou qualquer outro tipo de consumo. O aumento da distância entre a casa e o trabalho impõe jornadas cansativas, insegurança e invisibilidade social. As cidades, cada vez mais segmentadas, tornam-se inóspitas para as pessoas que as sustentam com sua força de trabalho
Em São Paulo, bairros como Pinheiros e Bela Vista têm sido alvo constante da verticalização e gentrificação (substituição da população original por outras de maior poder aquisitivo). Em Salvador, áreas da orla como o Buracão sofrem com o avanço de empreendimentos de luxo que descaracterizam a paisagem e eliminam a memória cultural. No Rio, comunidades da Zona Sul que passaram por processos de “pacificação” viram seus imóveis valorizarem a ponto de seus antigos moradores não conseguirem mais pagar por eles. Esses são apenas alguns exemplos da expulsão silenciosa em curso.
Diante desse cenário, algumas soluções se mostram urgentes, como a implementação de IPTU progressivo sobre imóveis ociosos, a limitação legal para aluguéis de curta temporada, a criação de cadastros obrigatórios para locações por plataformas digitais e o fortalecimento da função social da propriedade são medidas já adotadas em países como França, Canadá e Alemanha. No Brasil, essas estratégias poderiam ser adaptadas à nossa realidade com participação ativa da sociedade civil, especialmente dos segmentos historicamente excluídos das decisões urbanas.
Milton Santos nos lembra que o espaço é o lugar do vivido, mas também da disputa. Reconhecer a moradia como direito e não como mercadoria é o primeiro passo para reconstruir cidades mais justas, afetivas e humanas. Garantir o direito à cidade é também garantir o direito à permanência, à memória e ao futuro, pois, a luta contra a especulação imobiliária é, portanto, também uma luta antirracista e por justiça social.