Revista Raça Brasil

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Cabelo black power em caso de racismo algorítmico

O simples ato de emitir um documento de identidade tornou-se um episódio de discriminação racial para Maria Otília, estudante de 20 anos da Universidade de Brasília. Ao tentar registrar sua nova carteira de identidade em uma delegacia do Distrito Federal, o sistema biométrico da Polícia Civil não reconheceu seu cabelo black power, chegando a “apagá-lo” digitalmente ou deixá-lo esbranquiçado nas imagens capturadas. O caso expõe falhas graves nos sistemas de reconhecimento facial utilizados pelo poder público e reacende o debate sobre racismo algorítmico no Brasil.

Especialistas apontam que o ocorrido com Otília não é um incidente isolado, mas sim sintoma de um problema estrutural. Tarcízio Silva, pesquisador de inteligência artificial e autor do livro “Racismo Algorítmico”, explica que sistemas de reconhecimento facial frequentemente falham ao processar características fenotípicas de pessoas negras. “É inaceitável a implementação de serviços públicos com esse nível de falha, que representa negligência institucional”, afirma Silva, destacando que a tecnologia deveria passar por testes de diversidade étnico-racial antes de ser adotada.

A Polícia Civil do DF não respondeu aos questionamentos sobre qual sistema utiliza ou se foram realizados testes de diversidade antes da implementação. Fernando Nascimento dos Santos, advogado especialista em relações raciais da UnB, ressalta que casos como este configuram racismo institucional e devem ser denunciados ao Ministério Público. “A tecnologia está reproduzindo o racismo estrutural da sociedade brasileira”, analisa Santos, sugerindo que o MP poderia inclusive mover ação civil pública contra o Estado.

Para Maria Otília, membro da Frente Negra de Ciência Política, a experiência foi profundamente violenta. “Não ter meu cabelo reconhecido é desconfigurar quem eu sou”, desabafa a estudante, que precisou aceitar uma foto distorcida por necessidade do documento. O caso ocorreu próximo ao Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, data que marca justamente a luta contra a invisibilização de mulheres negras – ironicamente, o sistema biométrico promoveu exatamente esse apagamento.

O Ministério Público do DF informou que, embora tenha registrado 50 casos de discriminação racial em 2022, ainda não possui denúncias específicas sobre racismo algorítmico – o que revela como esse tipo de violência tecnológica permanece subnotificado. Especialistas alertam que, sem regulamentação adequada e testes de diversidade, sistemas automatizados tendem a reproduzir e amplificar vieses discriminatórios presentes na sociedade.

O caso de Maria Otília ilustra como o racismo se manifesta em novas tecnologias e serviços essenciais. Mais do que uma falha técnica isolada, revela a necessidade urgente de auditorias étnico-raciais em sistemas biométricos e de reconhecimento facial utilizados pelo poder público. Enquanto autoridades não se pronunciam sobre o caso, a estudante faz um apelo: “Tenho certeza que não sou a primeira, mas espero ser a última a passar por isso”. Sua experiência evidencia que, no Brasil, até mesmo o direito à própria imagem ainda é negado à população negra.

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