“E hoje, no asfalto, a moda é ser cria”?”
Nos becos e vielas do Brasil, no Carnaval e nas redes sociais, uma estética salta aos olhos: cabelos crespos em tranças ou black power, unhas longas e vibrantes, cílios dramáticos, roupas coloridas, maxis acessórios e a pose, ou melhor, a postura altiva.
Não é apenas sobre moda, estilo. É muito mais. É sobre ser, resistir e agora também influenciar. É sobre autoaceitação, identidade e amor próprio.
Assim, a pergunta que ecoa é: e hoje, no asfalto, a moda é ser cria?
Em um passado não muito distante, quase não existiam exemplos de mulheres negras com suas curvas, bocas, cabelos volumosos e sua estética marcante como modelos a serem seguidas.
Por muito tempo, meninas negras amarravam toalhas na cabeça para imitar os cabelos lisos e longos que as propagandas insistiam em exaltar como único padrão de beleza. A tentativa de se sentirem aceitas lhes rendia até mesmo queimaduras com os tradicionais pentes e chapas de ferro para alisar os cabelos.
Mas as dores e cicatrizes – sejam as do período escravocrata ou as de poucas décadas atrás em procedimentos capilares – não foram capazes de apagar nossa história e nossa identidade.
Nos anos 2000, com a expansão das redes sociais, as mulheres negras começaram a entender que sua estética, além de herança ancestral, é ato político e pedagógico de ocupação de espaços e, ao mesmo tempo, simboliza a recusa da opressão pelo padrão de beleza eurocêntrico. Um verdadeiro projeto de emancipação e resistência ao racismo.
A expressão “ser cria”, originalmente associada às favelas urbanas, aos espaços de marginalização e sobrevivência, ganhou novos contornos. Hoje, ser cria é estilo, é autenticidade. As mulheres negras, historicamente invisibilizadas e alijadas dos padrões de beleza, têm protagonizado uma revolução estética e política em um país que insiste em invisibilizá-las e lhes negar espaços de poder e decisão.
Nossa estética é linguagem. Desde os turbantes às tranças nagô, dos delineadores ousados ao batom vermelho, cada elemento comunica uma escolha radical de autoafirmação. Em um país que insiste em associar beleza ao embranquecimento, exibir a negritude com orgulho é um ato de insubmissão.
Mais do que nunca, essas estéticas são apropriadas e reinterpretadas pelo mercado da moda, muitas vezes resultando no apagamento de suas raízes. As grandes marcas de moda e beleza, antes indiferentes à diversidade, hoje “surfam na onda” do que é cria, do que é preto, do que é favela. Mas há um abismo entre usar e pertencer; entre se apropriar e respeitar.
A estética é consumida, mas o corpo que a criou segue sendo marginalizado. Em outras palavras, adoram a estética negra, mas seguem odiando as mulheres negras, cujo corpo continua sendo hipersexualizado, criminalizado ou lido como descartável.
Se hoje a moda é ser cria, é preciso demarcar que ser cria vai além da imagem; é respeitar o corre; é reconhecer as histórias que moldaram essa estética; é ter orgulho de onde veio e saber que levará as suas aonde quer que vá. É entender que o autoamor e autoafirmação se realizam quando valorizamos as nossas origens e a nossa essência ancestral.
O que o mercado chama de tendência, a favela chama de vivência. O que a elite chama de ousadia, a mulher preta chama de resistência.
Então, se hoje a moda é ser cria, que não se esqueçam: ser cria não é vestimenta. É vivência.