O quarto dia da 56ª edição da Casa de Criadores, realizada no Centro Cultural São Paulo, foi marcado por desfiles que celebraram com força e sensibilidade a memória negra — especialmente a das mulheres. Um dos destaques da noite foi a Yebo, marca comandada por Domênica Dias, filha de Mano Brown. Embora a estilista não tenha comparecido, sua mãe, Eliane Dias, esteve presente — tanto na primeira fila quanto nos bastidores, representando a marca com firmeza e elegância.
A Yebo levou à passarela uma alfaiataria desconstruída e contemporânea, com toques de streetwear, criando peças que refletem atitude e sofisticação. A coleção, intitulada Focus in Moviment, foi pensada para mulheres reais — e também apresentada por modelos masculinos, num desfile onde o preto, branco e cinza dominaram, em peças amplas como blazers, bermudas, calças e jaquetas cropped.
Durante o desfile, um momento tocante emocionou quem assistia: imagens de mulheres negras eram exibidas em um telão ao fundo. Entre elas, uma homenagem delicada a Preta Gil, que faleceu no último dia 20.
A presença de Eliane também ganhou atenção fora da passarela. Nas redes sociais, Mano Brown esclareceu os rumores sobre a vida pessoal dos dois: “Há mais de dez anos, eu e Eliane Dias não estamos mais juntos enquanto casal, mas seguimos unidos pela família, pela amizade e pelos compromissos. Eliane é uma excelente mãe, companheira nas horas boas e ruins, empresária e CEO da empresa que gerencia minha carreira”, escreveu. Eliane preferiu não dar entrevistas, mas posou para fotos com simpatia e confiança.
Outras marcas também trouxeram suas homenagens à ancestralidade negra. Mônica Anjos e Jacobina desfilaram coleções cheias de força, beleza e propósito, misturando referências históricas com elementos contemporâneos — como alfaiataria, bordados manuais e tecidos confortáveis, com estética apurada e pensamento social.
Na Jacobina, o estilista Rafael Aquino apresentou a poética coleção Névoa, que refletiu sobre o apagamento das mulheres negras na história. Inspirado em sete figuras importantes — como Carolina Maria de Jesus, Tia Ciata, Marsha P. Johnson, Ruth de Souza e outras — além de mulheres anônimas, Rafael trouxe à tona uma alfaiataria refinada, marcada por flores bordadas com resíduos de embalagens e cristais. Tudo isso sobre uma base preta, simbolizando as memórias apagadas, mas que brilham quando tocadas pela luz.
Os detalhes falam alto: estampas que lembram rachaduras se abriam em tons de verde e vermelho, como frestas de luz; manchas propositalmente feitas lembravam a iluminação suave das lamparinas a querosene, como descreve o release da artista Lucélia Maciel. Um resgate afetivo da memória coletiva que a sociedade insiste em deixar nas sombras.
Já Guma Joana, em sua 10ª participação na Casa de Criadores, manteve sua veia crítica viva. Com uma coleção provocativa e vibrante, ela reafirmou a importância da comunidade trans na história e na cultura. A passarela se tornou uma celebração com a presença de nomes como Dudu Bertholini e Maxi Weber. “A comunidade trava existe desde a pré-história e vai continuar existindo no futuro”, afirmou a estilista. E sua coleção deixou isso claro, em cada look que desfilava orgulho, resistência e alegria.
Rober Dognani, veterano da Casa de Criadores, emocionou com uma coleção inspirada em histórias de família — algumas quase fantasmagóricas, como o vestido da “Nona Cega”, um modelo com cara de século 19, mas feito de náilon, ressignificando passado e presente.
Filipe Freire surpreendeu ao abrir mão dos tecidos para criar uma coleção inteira feita com argolas metálicas, rompendo com expectativas e mostrando a potência da criatividade quando se ousa sair do comum.
A noite foi, acima de tudo, um tributo à memória, à representatividade e à força de comunidades historicamente marginalizadas. Uma passarela onde a moda deixou de ser apenas roupa — e se tornou discurso, homenagem e resistência.