Nesta semana em que celebramos o Dia Internacional de Conscientização sobre Perda e Desperdício de Alimentos, os números falam por si. O mundo desperdiça mais de 1 bilhão de refeições todos os dias, segundo a ONU, o que equivale a cerca de 1,05 bilhão de toneladas de alimentos descartados a cada ano. Esse desperdício responde por até 10% das emissões globais de gases de efeito estufa e, no Brasil, chega a 30% de toda a produção nacional, algo em torno de 46 milhões de toneladas anuais e um prejuízo de mais de 61 bilhões de reais.
O Pacto Nacional contra a Fome mostra que 84% dessas perdas acontecem antes mesmo de o alimento chegar ao consumidor, nos campos, nos entrepostos, no transporte e no armazenamento, revelando que o problema começa muito antes de nossas escolhas individuais.
Uma das razões menos discutidas, mas muito presente nesse processo, é a estética alimentar. Desde cedo aprendemos, por meio de contos de fadas, propagandas e hoje também pelas redes sociais, que apenas os alimentos grandes, brilhantes, coloridos e simétricos são dignos de estar à mesa.
A famosa maçã da Branca de Neve, lisa e reluzente, é símbolo desse ideal que subliminarmente internalizamos. O resultado desse condicionamento cultural é o descarte de toneladas de frutas e hortaliças absolutamente seguras e nutritivas, que são rejeitadas apenas porque não correspondem ao padrão visual que se tornou norma.
Mas a estética alimentar não é apenas um critério de aparência, ela é também um instrumento de segregação social. Um exemplo é a prática em que comércios localizados em bairros com público de maior renda recebam lotes de alimentos cuidadosamente selecionados, impecáveis em sua apresentação.
Já nas periferias, os mesmos produtos aparecem menores, com marcas, opacos ou fora do padrão considerado “bonito”. Em muitos casos, a própria empresa define essa divisão, estabelecendo que a perfeição visual deve estar associada a determinados públicos, enquanto os demais ficam com aquilo que foi classificado como de menor valor. Essa lógica cria uma hierarquia perversa em que a aparência do alimento se torna marcador de privilégio.
O alimento tido como “bonito”, grande e simétrico, exibido nas prateleiras centrais, passa a simbolizar status e distinção. O alimento fora do padrão, quando não é descartado diretamente na lavoura, acaba sendo empurrado para mercados periféricos, reforçando desigualdades históricas. Essa divisão, que muitas vezes não é percebida por quem consome, naturaliza a ideia de que alguns têm direito ao “desejado” enquanto outros ficam com o “indesejado”.
O que deveria ser entendido como diversidade natural de formas e tamanhos se transforma em mais uma ferramenta de exclusão, aprofundando o abismo social que já existe no acesso ao alimento. Ocultado por processos considerados aceitáveis, com fichas técnicas que definem o padrão para comercialização, alimentos passam por processo seletivo estético e não apenas sanitário.
Com as mudanças climáticas, essa lógica se tornará cada vez mais insustentável, pois secas prolongadas, chuvas intensas e ondas de calor alteram, inevitavelmente, diversas características dos alimentos. Cada vez mais será comum encontrar alimentos com marcas, tamanhos desiguais e formatos fora do padrão. Insistir em critérios estéticos rígidos nesse novo cenário é ampliar ainda mais o desperdício em um mundo que já convive com fome e insegurança alimentar. Os alimentos orgânicos, muitas vezes disformes e singulares, já nos ensinam que a diversidade visual não é defeito, mas expressão de autenticidade, resiliência e equilíbrio com a natureza.
Nesta semana, a reflexão urgente para libertar os alimentos da tirania da estética significa combater não apenas o desperdício, mas também a injustiça que se esconde por trás dele. É entender que a verdadeira beleza está no ato de nutrir e sustentar a vida, e não na padronização que transforma comida em mercadoria de distinção social.
Questionar a segregação que define quem consome o quê, é passo essencial para construirmos um sistema alimentar mais justo, inclusivo e sustentável. Aceitar a singularidade de cada alimento é reconhecer que cada fruto, cada talo e cada semente carregam valor, e que nenhum deles deveria ser descartado apenas por não corresponder ao molde estético que inventamos.