Revista Raça Brasil

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A cultura perde Marquinho PQD e Gilsinho: a voz e a poesia do povo

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Flavia Cirino

Editora-chefe da revista RAÇA. Jornalista pós-graduada em jornalismo cultural e assessoria de imprensa, com ampla experiência em televisão e impressos. Também atua como relações públicas no universo corporativo e artístico.

A música chora: a partida de Gilsinho e Marquinho PQD, dois pilares do samba e da cultura popular

 O Brasil ficou “mais pobre culturalmente” com a perda de dois grandes nomes do samba em menos de 48 horas. O intérprete portelense Gilsinho e o compositor Marquinho PQD partiram, deixando um vazio profundo no coração do carnaval e da música popular.

 

Mais do que artistas, eram homens pretos de potência imensurável, representantes de uma tradição que sustenta o Brasil culturalmente e simboliza a resistência de um povo.

 

A voz que embalava a Portela e emocionava o carnaval

 

Gilsinho não era apenas um intérprete. Era a voz da águia altaneira, aquele grito de guerra que fazia o povo vibrar na Sapucaí e no Anhembi. Filho de Jorge do Violão e afilhado de Casquinha, carregava na garganta a herança de uma linhagem sagrada do samba. Desde 2006, à frente da Portela, e também defendendo cores paulistas, como a Tom Maior e a Vai-Vai, Gilsinho construía pontes entre gerações.

 

No desfile de 2024, quando a escola de Madureira exaltou Milton Nascimento, ele arrebatou com “Maria Maria”, lembrando ao público que sua voz era também um instrumento de denúncia, de afirmação da negritude e da ancestralidade. Ao longo da trajetória, cantou Clara Nunes, louvou Xangô e foi peça fundamental em títulos históricos. No carnaval, tinha a capacidade de transformar a avenida em templo e a plateia em comunidade.

 

Sua morte precoce, após complicações cirúrgicas, deixou a Portela em luto oficial. A Tom Maior também lamentou profundamente, ressaltando sua generosidade em permanecer nos momentos difíceis, reconstruindo a esperança de uma escola que se reergueu com ele. Gilsinho personificava o elo entre tradição e modernidade, lembrando que o samba é sempre coletivo, mas precisa de vozes que o guiem.

 

O poeta das esquinas que virou clássico do samba

 

Enquanto o Rio chorava a partida de Gilsinho, também perdia Marquinho PQD, um dos grandes compositores da geração pós-Fundo de Quintal. Autor de mais de 400 músicas, ele deixou marcas profundas no repertório do samba. Foi ouvido na voz de Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e tantos outros que encontraram em suas composições a tradução da vida do povo.

 

Compositor de “Fase de Amor” e “Coração Feliz”, PQD foi além da criação: foi mestre, referência e guardião da poesia cotidiana. Filho de Padre Miguel, levava para o mundo a cadência da Mocidade, a batida de terreiro, a força da Zona Oeste. Sua luta contra o câncer, enfrentada com dignidade, revelou mais uma vez a fibra de quem nunca se afastou da comunidade e manteve o samba como sua trincheira. O velório aberto na quadra antiga da Mocidade Independente foi um gesto simbólico: devolver ao povo aquele que sempre cantou para o povo.

 

PQD deixa esposa, filhos, netos e um legado que não cabe em estatísticas. Sua obra é viva, porque atravessou décadas, manteve-se atual e mostrou que o samba continua sendo a maior narrativa coletiva do Brasil.

 

Cultura de resistência

 

Dois homens pretos potentes, símbolos de uma cultura de resistência

Gilsinho e Marquinho PQD partem quase juntos, como se o destino tivesse decidido marcar o samba com uma dupla ausência irreparável. Suas trajetórias revelam mais do que talento: mostram a potência de homens pretos que conquistaram espaço e reverência em um país marcado pela desigualdade e pelo racismo estrutural.

 

Eles não apenas cantaram ou compuseram; foram líderes espirituais de uma cultura que organiza comunidades, sustenta identidades e dá dignidade a milhões. A morte de ambos é um lembrete de como a cultura popular, sustentada historicamente por corpos negros, precisa ser reconhecida, valorizada e preservada.

 

Se o Brasil ainda é referência musical no mundo, figuras como Gilsinho e PQD, que doaram suas vidas ao samba, fazem parte disso. O silêncio que fica é imenso, mas é também um convite: cabe a todos garantir que suas vozes e versos continuem ecoando, não apenas no carnaval ou nas rodas, mas na memória coletiva da nação. Porque o samba não morre, mas chora. E agora chora a ausência de dois de seus gigantes.

 

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