Em uma decisão histórica, tribunais norte-americanos determinaram que letras de rap não devem ser tratadas como evidências literais em processos judiciais, em um caso envolvendo os rappers Drake e Kendrick Lamar. O processo teve origem na faixa “Not Like Us”, de Kendrick, considerada uma diss track que mencionava Drake, e levantou a questão sobre os limites da liberdade artística frente ao sistema judicial.
A juíza Vargas destacou um ponto crucial que muitos promotores e críticos ainda ignoram: o contexto importa. “Declarações devem primeiro ser vistas em seu contexto”, escreveu ela, enfatizando que nenhum ouvinte razoável interpretaria uma letra de rap como notícias reais.
O hip hop se baseia em exagero, metáfora e competição a arte de dizer demais para provar um ponto. Tratar isso como verdade factual não é apenas insensível, é inconstitucional. No entanto, promotores vêm transformando letras de rap em armas, tentando atalhos processuais e explorando décadas de preconceito racial histórico na mídia contra o gênero.
O tribunal também rejeitou a ideia de que a indignação viral pode alterar a realidade jurídica. Como explicou Vargas, em um mundo conectado, é possível encontrar “apoio para praticamente qualquer proposta, por mais absurda que seja, em questão de segundos.” A juíza deixou claro que interpretações literais de fãs não transformam uma letra em difamação; a lei, e não a internet, decide o que é verdade.
Essa decisão tem implicações que vão além do caso de Drake e Kendrick. O hip hop sempre foi a voz das ruas — crua, destemida e sem filtros. Rappers utilizam suas músicas para documentar racismo, desigualdade e resiliência, contando histórias que muitas vezes são ignoradas. Confundir expressão artística com intenção criminosa é transformar a cultura em arma contra seus próprios criadores.
Em 2022, a Califórnia já havia dado um passo importante ao sancionar a Lei de Descriminalização da Expressão Artística, limitando o uso de letras de rap e outras obras criativas como prova em tribunais. A legislação enviou uma mensagem clara: arte não é crime. Agora, a expectativa é que o Congresso dos EUA amplie essa proteção nacionalmente com a Lei de Restauração da Proteção Artística (RAP) de 2025. O projeto de lei estabelece que, para que uma obra seja usada como evidência, será necessário demonstrar que o artista tinha intenção de ser interpretado literalmente e que a obra se refere diretamente a um crime específico.
A decisão recente reforça a importância de separar arte e realidade no contexto jurídico, protegendo a liberdade criativa e garantindo que o hip hop e outras formas de expressão artística continuem a servir como voz social e cultural sem sofrer punição por sua linguagem, metáforas ou exageros dramáticos.