Passado, presente e futuro: Ecos do Atlântico Sul
A Antônia estava feliz, não só porque a sinhá tinha passado a sair mais de casa e sempre a levava como companhia, mas também porque tinha ganhado roupas novas muito bonitas, parecidas com as roupas das vendedoras do ancoradouro, mas de um tecido muito mais elegante, seda, que a sinhá preferia chamar de silk. Quando saíam, ela também usava algumas jóias emprestadas pela sinhá, colares e pulseiras de ouro, e um broche no bonito pano-da-costa jogado sobre o ombro direito. A sinhá ia principalmente às casas de algumas senhoras, novas amigas da sociedade, e a Antônia ficava esperando no quintal ou na cozinha, conversando com as pretas da casa e as acompanhantes das visitas, todas sempre muito bem arrumadas. Ela disse que as sinhás se sentiam vaidosas por estarem acompanhadas de pretas bem-vestidas e educadas, como eu de fato pude perceber quando fui trabalhar para os ingleses. (Ana Maria Gonçalves, p. 134, 2006)
Li esse trecho do livro ”Um defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, enquanto a performer Val Souza adentrava à cena no Teatro do Goethe-Institut, ICBA. A performance Coleção Asè, em sua terceira versão, com curadoria de Juci Reis e mais uma vez concebida coletivamente, arrebatou a platéia em lágrimas. O texto por mim interpretado em língua portuguesa brasileira, para uma platéia composta pelo público soteropolitano e pelos participantes da Conferência Ecos do Atlântico Sul – evento cujo idioma oficial foi o inglês – fazia referência ao local onde estávamos: o bairro do Corredor da Vitória, na cidade de Salvador na Bahia. A diferença do idioma foi transcendida pela criação musical assinada pela compositora Laila Rosa em parceria com Iuri Passos, juntamente com Brenda Silva, Adeline Seixas e Daniela Penna, do grupo Rum Alagbè do Terreiro do Gantois, trazendo a percussão tocada pelo Alagbè Iuri e os característicos instrumentos do terreiro, nas mãos das meninas da casa, acompanhado pelo violino elétrico e voz de Laila Rosa.
A mulher negra escravizada que servia de ostentação para as mulheres brancas do período colonial, interpretada por Val Souza, caminhou de modo sombrio desde a rua para dentro do teatro, e acompanhada por toda a platéia do espetáculo, passando pela galeria de arte onde parte da obra também estava em exposição, conduziu as pessoas à arquibancada do teatro, para que no palco fosse ao encontro simbólico do nosso passado, presente e futuro. Lá dentro, sentada numa cadeira e ladeada por um par de sapatos brancos bordados com búzios, bem destacado pela iluminação cênica, eu começo a leitura, tentando expressar na entonação da fala, a consciência de que muitas de nós, mulheres negras, ainda não saímos desse lugar. A música ornava a leitura dramática com a performance de Val Souza, que vestida com a peça intitulada Marabô, maquiagem dourada e penteado conceitual formando uma máscara de tranças com búzios, criado por MukunãLab – doa sua corporalidade, emoção e intelecto para contextualizar a maneira como, mesmo com as dores e opressões que carregamos, sempre tivemos o amparo das nossas comunidades de resistência para reexistir
A performance artística “Coleção Asè” compôs a programação da Conferência Internacional “Ecos do Atlântico Sul – Sobre o futuro das relações transatlânticas do Sul”, realizada de 23 a 25 de abril, em Salvador, Bahia, cidade de grande relevância histórica nesse contexto temático. Mais de 60 artistas, curadores, cientistas e pensadores nacionais e internacionais, vindos de países da África, Europa e América do Sul, foram convidados para o evento, que ocupou o Goethe-Institut Salvador -BA e a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
As questões que debatemos nesses dias nos provocaram a pensar: Qual a importância do Triângulo Transatlântico no século 21? Que tipo de posição a Europa vai assumir frente à África e à América do Sul, depois de ter feito o papel de hegemonia colonial, em diferentes nuances, durante os últimos 500 anos? Uma busca por uma abordagem interdisciplinar, multi-espacial e multi-temporal, unindo vozes de variadas experiências e origens. Dentre essas linguagens, pensamos arte como forma de produção de conhecimento numa perspectiva decolonial.
Sob curadoria de Ines Linke e Uriel Bezerra, a exposição coletiva, homônima ao título da conferência reuniu vídeos, fotografias, objetos, serigrafias, esculturas sonoras, cartazes e performances de um grupo internacional de 15 artistas/coletivos que, por meio de seus trabalhos, comentaram as relações complexas entre os países que compõem o Atlântico Sul. Segundo o texto curatorial: “Cada artista compõe uma espécie de “história alternativa” que desafia a historiografia coletiva. Em seus trabalhos, os artistas examinam trocas, investigam relações, diluem localizações geográficas, destacando suas ressonâncias no tempo presente. As perspectivas individuais, implícitas em imagens, sonoridades, documentos, vestígios, instrumentos e peças, ecoam as histórias coloniais e pós-coloniais, as diásporas, migrações globais e processos transculturais”
Nesse contexto construímos uma instalação com parte da obra “Coleção Asè”, problematizando a relação entre Brasil, Portugal, Angola e Nigéria por meio de uma interpretação da indumentária das mulheres de religião de Matriz Africana no Brasil. A peça intitulada Inaê, foi elaborada com a saia confeccionada com a colcha de cama que integrou o enxoval do casamento de meus avós em Santo Amaro – BA, na década de 1950, uma confecção artesanal com bordado Richelieu que nasce da rica tradição da técnica têxtil do Nordeste do Brasil, transformada em obra de arte como ferramenta de luta antirracista. A instalação conta com projeção de um vídeo de Edgar Azvedo e Helemozão, e está em cartaz na Galeria do Goethe-Institut, Salvador – BA para depois entrar em circulação pela América Latina.
Como uma forma de desenhar futuros, materializamos a arte forma de produção de conhecimento e intervenção social por meio da Performance Coleção Asè, pois como testemunha presente do tempo – passado que não se modificou, recordo que quando caminhava neste mesmo Corredor da Vitória, nos dias da etapa de planejamento e produção destes eventos aqui citados, eu podia ver como descrito por Ana Maria Gonçalves, em Um Defeito de Cor, as mulheres brancas saindo do altos prédios com seus motoristas negros, suas babás e empregadas domésticas negras, devidamente fardadas! E mesmo eu, que nunca trabalhei para os ingleses, reiteradas vezes ao visitar pessoas conhecidas que residem nessa localidade, jamais esqueço do sem número de vezes em que me foi indicado acessar o elevador de serviço, mesmo eu, que nunca andei fardada dentro dos códigos vestimentares de suas escravizadas domésticas.
CAROL BARRETO
Mulher Negra, Feminista e como Designer de Moda Autoral elabora produtos e imagens de moda a partir de reflexões sobre as relações étnico-raciais e de gênero. Professora Adjunta do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – FFCH – UFBA e Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC – UFBA, pesquisa a relação entre Moda e Ativismo Político.
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas