A abolição e as mentiras renitentes
Colunista: Ramatis Jacino
Três razões combinadas levaram ao fim da escravidão no Brasil: a luta dos escravizados, a pressão do Império Britânico e a lógica do capitalismo. A primeira materializou-se nas fugas, assassinatos de senhores e feitores, rebeliões, insurreições e até mesmo a criação da mítica N’Angola Jamga, um verdadeiro país no interior da Colônia. A segunda foi a expansão do capitalismo industrial liderado pela Inglaterra, carente de mercados consumidores, disputando rotas de navegação e que, ao impor uma nova divisão internacional do trabalho, exerce forte pressão pelo fim do tráfico. A terceira foi a lógica capitalista de acumular riquezas comprando a força de trabalho e não o indivíduo, que na condição de escravizado era pouco produtivo e poderia se evadir, adoecer ou morrer, em prejuízo do seu proprietário.
A legislação foi o principal instrumento para retardar aquela transição que os representantes das oligarquias escravistas já percebiam inexorável e buscavam fazê-la sob seu controle. Era objetivo, ainda, marginalizar econômica e socialmente os ex escravizados, a quem as elites consideravam incapacitados para o trabalho assalariado. Promulgadas em 07/11/1831 e 04/09/1850, nomeadas respectivamente Feijó e Eusébio de Queirós, as primeiras leis que proibiam o tráfico, na verdade promoviam o controle demográfico ao determinarem o reenvio dos cativos ao continente africano. A Lei de Terras, publicada apenas 14 dias depois, expulsou para o ambiente urbano os pobres em geral e os negros em particular que, não fosse por ela, teriam na pequena propriedade rural uma opção de sobrevivência nos pós escravidão. Denominada Rio Branco, a Lei 2040, de 28/09/1871, tornava os filhos de mulheres escravizadas legalmente livres e, ao manter a mãe cativa promoveu a desagregação familiar. Sob número 3.270, a lei Saraiva/Cotegipe, de 28/09/1886, ao “libertar” os trabalhadores com mais de 60 anos apenas eximia o senhor da obrigação de garantir alimentação e moradia a alguém que já havia exaurido todas as suas forças produzindo a riqueza por ele apropriada. O Decreto Imperial 3.353 de 13 de maio de 1888, além de inócuo, pois apenas 5% da população negra ainda era mantida escravizada, não impediu a continuação do trabalho análogo a escravidão e, como as anteriores, não criou nenhuma alternativa de sobrevivência para a população negra.
Essa legislação, assim como a proibição a que negros estudassem, determinada pelos decretos 10.331, de 17 de fevereiro de 1854, 382 de 01 de julho de 1854 e 7.031, de 6 de setembro de 1878, foram de iniciativa da Casa Real, tanto quanto os privilégios concedidos aos imigrantes, no bojo do projeto de branqueamento da Nação e substituição da mão-de-obra negra pela europeia. Legislação essa que somada a iniciativas estaduais e municipais, como o Código de Postura da Cidade de São Paulo de 06/10/1886, que proibia a escravizados o exercício de uma série de ocupações e os expulsava dos espaços mais valorizados da cidade, foram determinantes para a exclusão social dos ex escravizados e seus descendentes.
O sociólogo Florestan Fernandes sustentava que a razão daquela marginalização seria resultado da omissão das classes dominantes e do Estado. As pesquisas produzidas nos últimos 20 ou 30 anos permite aprofundar sua análise e afirmar que a razão pela qual os negros foram marginalizados do mercado de trabalho assalariado foi resultado da ação deliberada das elites e do Estado que a elas servia, resultado das formulações racistas construídas ao longo da escravidão, para justifica-la.
Essas mesmas pesquisas demonstram, ainda, ser falsa a interpretação que a instauração da república foi uma espécie de vingança das oligarquias rurais contra as iniciativas da monarquia para acabar com aquele sistema. Ambas as correntes políticas – compostas por grandes proprietários de terras e escravizados – abrigavam defensores e opositores da escravidão e o grupo que contra ela se insurgia avolumava a medida que as três razões referidas acima se tornavam mais agudas. É verdadeiro, todavia, o fato que, tanto os defensores da continuidade dos Orleans e Bragança no poder como os fazendeiros e militares que participaram do golpe de 15 de novembro de 1889, operaram para impedir a inserção econômica dos ex escravizados e seus descendentes e pela manutenção da sua marginalização social, que se mantém até os dias atuais.
Sobre o Colunista: Ramatis Jacino – Professor do Bacharelado em Ciências Econômicas, do Programa de Pós Graduação em Econômica Política Mundial e membro do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros da UFABC. Mestre e doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Pós doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.