A coisa tá “PRETA” no São Paulo Fashion Week
Por Moara Sacchi •
Embora a alienação privilegiada e o analfabetismo racial ainda sejam obstáculos a serem superados pela indústria da moda brasileira, o ‘Brazil’ teve de conhecer o Brasil após a enorme repercussão mundial do movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). O mundo se comoveu com o assassinato brutal do norte-americano George Floyd, em maio de 2020. A moda também acompanhou esse movimento, por oportunismo ou não, entramos com tudo em diversos espaços, a partir daquela tragédia mudanças positivas e irreversíveis foram provocadas. Uma delas foi a grande conquista dentro da maior semana de moda da América Latina, o São Paulo Fasion Week, que agora exige que as grifes tenham pelo menos 50% de seu casting formado por “negros, afrodescendentes e (ou) indígenas”, desde o ano de 2020. A proposta foi feita pelo coletivo de modelos negros Pretos na Moda, em parceria com o VAMO (Vetor Afro-Indígena na Moda), que também surgiu no ano de 2020. A organização de profissionais do setor trabalha o antirracismo e fomenta a luta contra o preconceito sistêmico através de ações educativas e positivas.
PRETES NA MODA: O NOVO NORMAL
Há anos a comunidade negra presente na moda questiona a hegemonia branca que rege o evento desde 1995, ano de sua fundação. O estopim para o início de um movimento que reivindicava a equidade racial no evento foi a temporada de 2008, quando a promotora Déborah Kelly Affonso, da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, questionou o fato de que apenas oito dos 344 modelos que desfilaram eram negros, ou seja, 2,3% do total. Em 2009, Déborah propôs junto ao Ministério Público que o São Paulo Fashion Week implementasse a lei que garantia no mínimo 10% de cotas para modelos negros. Apesar do falatório gerado entre os estilistas e empresários, ninguém se opôs formalmente à proposta. Em 2009, no primeiro desfile após a implementação das cotas, modelos negros já reivindicavam o aumento do número da cota prevista no TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) assinado entre o Ministério Público e a organização do SPFW, visto que os negros na época representavam 49,7% da população, mas não tiveram sucesso.
Em 2011, duas grifes ignoraram a cota de 10% de modelos negros no primeiro dia da SPFW, a marca Tufi Duek usou 26 modelos, sendo que apenas duas eram negras. No caso do estilista Samuel Cirnansck, todas as 26 moças que desfilaram eram brancas.
No ano de 2014 foram 35 grifes e dessas 9 não trouxeram modelos negros às passarelas. No quesito diversidade, Ellus e Cavalera se destacaram trazendo, cada uma, sete modelos negros no casting em desfile com 46 e 49 looks, respectivamente. Em outubro de 2015, por conta do não cumprimento do TAC firmado no ano de 2009, a ONG Educafro enviou uma notificação extrajudicial à Prefeitura de São Paulo exigindo que os 10% de cotas fossem cumpridos na próxima temporada.
Nesse mesmo ano, em 2015, Luiz Cláudio se tornou o primeiro designer negro a levar sua marca, Apartamento 03, para a passarela da SPFW. Porém, mesmo sendo negro, trabalhou durante algumas edições com um casting se não completamente, majoritariamente branco.
“APÓS MINHA ESTREIA, EM 2015, EU AINDA NÃO SABIA O QUE PODERIA REALMENTE ESCOLHER, DEFINIR E SE PODERIA MESMO, NA REAL, FAZER MINHAS ESCOLHAS.”
Afirma Luiz Cláudio, em entrevista exclusiva à Revista Raça Brasil.
No ano de 2016, Emicida, ao lado de seu irmão Evandro Fióti e do estilista João Pimenta, fizeram história na semana de moda paulistana. Com um show completamente fora dos padrões e uma maioria negra na passarela, destacaram-se e emocionaram a todos, todas e todes que puderam presenciar esse momento.
Em 2017, ainda se via um saldo baixíssimo de diversidade nas passarelas e no backstage. No levantamento feito pela ELLE Brasil, foi descoberto que apenas 14,6% dos modelos que
participaram dos desfiles desta edição do evento eram negros, em um ano em que, segundo o IBGE, mais de 53,6% da população era negra. Os destaques dessa edição vão novamente para a grife Lab, comandada pelo trio Emicida, Evandro Fióti e João Pimenta, pelo comprometimento genuíno com a causa. Os estilistas Isabela Capeto e a marca À La Garçonne de Alexandre Herchcovitch e Fabio Souza, também destoaram dos demais com um casting mais diverso.
Em 2018, ano marcante para a história dos negros na moda internacional, quando Alton Mason se tornou o primeiro modelo negro a cruzar as passarelas da Chanel após 109 anos de existência da grife. A diversidade racial na moda brasileira ainda dependia de grifes jovens para acontecer, João Pimenta e Apartamento 03 se destacaram, esse foi o primeiro ano que o estilista Luiz Claudio ousou utilizar do seu poder para trazer um casting 100% negro em sua coleção “Medo da cor”.
“EU SEMPRE SONHEI EM FAZER UM DESFILE COM 100% DE MODELOS NEGROS E ESPEREI O MOMENTO CERTO PARA FAZER E ASSIM TROUXE A COLEÇÃO MEDO DA COR” explica Luiz.
No ano de 2019, a edição SPFW N48 entra para a história da moda brasileira. A diversidade esteve presente de forma nunca vista antes. A edição foi marcada pela estreia épica da moda ancestral da marca Isaac Silva. Com a passarela protegida por arruda e sal grosso, Isaac trouxe em seu primeiro desfile um casting maioritariamente negro, com corpos reais, looks brancos fazendo referência ao Orixá, Deus das religiões de matriz africana, Oxalá. Além de Isaac Silva, Angela Brito, Cavalera, Amapô, Fernanda Yamamoto, João Pimenta, ÀO e Korshi 01 também trouxeram um casting verdadeiramente diverso e representativo.
Procurei o Paulo Borges, idealizador do evento, Leo Bronks, diretor criativo da SPFW48 e Emicida, fundador da marca Lab, para trazer a opinião deles à matéria, mas por conta da agenda, não conseguiram responder em tempo hábil para a construção da matéria.
O estilista, Luiz Cláudio, natural de Uberlândia, cresceu auxiliando sua mãe que era costureira, realizando pequenos acabamentos à mão. Assim passou a enxergar a costura desde muito cedo como uma possibilidade de trazer dinheiro para a família.
“EU NÃO SONHAVA COM ESSE LUGAR DE DESTAQUE, NA ÉPOCA EU SÓ QUERIA TRABALHAR, ESSA É A VIVÊNCIA DAS PESSOAS PRETAS, NÉ. A GENTE QUER TER UM ESPAÇO PARA A GERAÇÃO DE RENDA”, afirma Luiz.
Após concluir o ensino médio, Luiz passou a participar de concursos promovidos por algumas revistas de moda da época. Ao perceber que era premiado em quase todos, o estilista decidiu unir a paixão pela confecção das roupas, memórias afetivas e sua habilidade com os desenhos e optou por estudar moda na Universidade Federal de Minas Gerais, em 1999. Durante esse período, Luiz ficou desempregado e não podia mais pagar o curso. Foi quando viu o cartaz do concurso “Smirnoff Fashion Awards”, o prêmio era em Libras e ele sabia que se ganhasse poderia pagar o curso na faculdade. Se inscreveu, ganhou o primeiro lugar do Brasil e foi a Hong Kong representar o país, ficando em terceiro lugar mundial. Após esse prêmio, Luiz ganhou ainda mais notoriedade e reconhecimento antes mesmo de concluir o seu primeiro curso, na volta ao Brasil, recebeu uma bolsa de estudos da faculdade. Concluiu sua formação no curso técnico de moda no ano 2001, aos 26 anos.
Antes de abrir sua própria marca, Luiz chegou a trabalhar para 5 grifes simultaneamente para captar recursos e investir. Apartamento 03 surge também a partir da experiência dos nichos de cada uma das 5 marcas e do sentimento de “eu posso mais” e “quero vestir corpos que se pareçam comigo”. No início, ainda sem saber como, Luiz recebeu uma encomenda grande e costurou tudo com a ajuda do seu marido nesse apartamento. Uma mulher viu e pediu para que ele replicasse uma das peças para ela. A partir disso, outras mulheres lhe faziam encomendas e o “Apartamento 03” chegou aos closets de Belo Horizonte.
“CHEGOU UM MOMENTO QUE EU PERCEBI QUE PARA ATINGIR OUTRAS PESSOAS EU PRECISAVA FAZER TAMBÉM ALGO QUE TIVESSE UMA LEITURA MAIS COMERCIAL E ABRIR MAIS O MEU LEQUE. AS PESSOAS ME LIGAVAM E PEDIAM PARA VISITAR O APARTAMENTO 03, EU ACHEI O NOME CURIOSO E RESOLVI ADERIR, ASSIM EU PODERIA FAZER OUTRAS COISAS, PEÇAS PARA CASA, ROUPAS MASCULINAS...”, conta.
Em 2015 sua marca foi convidada a participar do SPFW. Até então suas peças eram expostas no Minas Trend Preview, que era um desfile reconhecido nacionalmente, porém muito menos que o SPFW.
“EU TIVE MEDO, MAS EU TAMBÉM SABIA QUE SERIA COMO TUDO O QUE JÁ ACONTECEU NO MEU TRABALHO. A CHANCE É AGORA! PEGA.”
Luiz nos contou que o mais difícil era se sentir à vontade nos eventos. Não foram poucas as vezes em que foi confundido com o garçom ou segurança das festas.
“É sempre muito difícil lidar com certas situações, imagina ter que explicar para aquelas pessoas que o jantar foi feito em minha homenagem. Várias vezes eu fui convidado a eventos e ia embora porque não estava confortável, não dava para ficar explicando o tempo inteiro para as pessoas que eu era convidado, cliente, estilista…”
A sensação de pertencimento é sempre difícil para pessoas negras pioneiras. Aqueles que têm a oportunidade de entrar em estruturas completamente brancas precisam ter coragem para aceitar o convite e muito jogo de cintura para se manter dentro dela. Luiz nunca se questionou sobre sua etnia, desde sempre sabe que é e se autodeclara preto.
Perguntei por que desde seu primeiro show até o ano de 2018 na edição SPFW N 46 senão todas, a grande maioria das suas modelos eram brancas e Luiz respondeu: “Sabe que eu sempre esperei que alguém me perguntasse isso de forma direta para ouvir uma resposta clara, porque eu sei que as pessoas têm essa curiosidade. Acontece que quando eu cheguei no SPFW tudo era branco, toda essa travessia que eu fiz e de onde eu vim, vivendo as coisas que vivi e ouvir certas coisas que naquele momento tive de ultrapassar, pois eu sabia aonde queria chegar e não podia perder meu foco. Eu sempre soube que eu encontraria o SPFW daquele jeito, então dediquei tempo a entender como as coisas aconteciam, quem comandava, quem tem poder para assim entender como o sistema funciona e assim poder dar a minha virada. Eu sempre sonhei em fazer um desfile com 100% de modelos negros e esperei o momento certo para fazer e assim trouxe a coleção Medo da Cor, com todas as modelos negras e com as roupas muito coloridas, coisas que a minha grife nunca tinha feito, era tudo muito neutro.”
Antes desse momento, o estilista Walter Rodrigues já havia feito um desfile com o casting 100% negro no Fashion Rio. Esse momento foi citado por Luiz, como um grande marco na moda. “Muitos acharam bonito na época, mas depois disso não aconteceu mais nada, mesmo depois de vermos que é possível as agências continuavam insistindo em ter um casting com inúmeras modelos brancas e ter uma Carmelita, a outra agência concorrente tinha uma Pathy de Jesus, então era assim que as indústrias trabalhavam. São muitas as regrinhas que temos que driblar dentro do mercado”, pontua o estilista.
E O DINHEIRO JÁ CHEGOU PARA AS PESSOAS PRETAS NA MODA BRASILEIRA?
Segundo o estilista Luiz Cláudio, “a revolução que aconteceu é apenas de imagem, eu ainda vejo meninas e meninos negros precisando trabalhar muito mais do que os modelos brancos para ganhar grana com a moda, enquanto a modelo x pode optar por não subir na passarela por menos de não sei quantos mil reais, a grande parte dos modelos negros precisa aceitar permuta ou trabalhar gratuitamente para ter uma oportunidade.”