A conquista e o vazio: o que há com você mulher negra bem sucedida?

Por: Shenia Karlsson

Num país racista como o Brasil já sabemos que a vida de uma mulher negra periférica é uma experiência que poucos resistiriam. Há anos atrás, lembro–me de uma colega do mestrado branca e brasileira da região do sul do país me dizer que não aguentava mais viver em Portugal e sofrer discriminação e xenofobia, que até de “prostituta” havia sido chamada uma vez. Eu ri e disse: “Já imaginou passar isso desde o dia em que nasceu? Pois é, essa é minha realidade enquanto mulher negra no Brasil”. Ela ficou atônita!

Apesar dos pequenos avanços, tenho tido a felicidade de acompanhar muitas trajetórias de mulheres negras que chegam lá. Enquanto negra, mulher e psicóloga clínica, atendo uma vasta diversidade de mulheres negras brasileiras e africanas transcendendo o maldito racismo de cada dia. Acredito que a implementação das cotas raciais (no Brasil) e sociais nas universidades e a luta antirracista abriu uma pequena janela para que pudéssemos aproveitar as pequenas oportunidades conquistadas, porque nada nos é dado de graça. Visto que somos resilientes e muitas vezes temos sangue nos olhos, nós negras, às duras penas estamos tentando ocupar espaços outrora negados pelo racismo estrutural nesse país.

No entanto, essas histórias e trajetórias de superação escondem dores sombrias e podem acometer nossas almas de forma muito profunda, e muitas se perdem pelo caminho afogadas pela angústia, pela apatia, pela solidão, pelo desafeto e pela falta de energia vital. Transitam na vida como um piloto automático e perdem o senso de existência sem ao menos saber verbalizar qual o sentido de sua vida, qual o seu real desejo. Essas mulheres têm lotado os meus horários de atendimento em busca de respostas para esse sofrimento psíquico recorrente no mundo capitalista onde ter é a prioridade da maioria.

Este artigo é sobre a mulher negra que chegou lá mas se perdeu em si. Como todos os artigos que escrevo são baseados em minha experiência clínica, esse fenômeno me chamou a atenção e imediatamente surgiram muitas questões: Qual o preço da fuga da precariedade? Qual é o seu real desejo? Quais valores estamos cultivando em nossas trajetórias? Humildemente, acredito levantar tensionamentos a fim de criar um espaço de reflexão coletivo para pensarmos juntas caminhos possíveis, embora não exista uma receita pronta para contemplar a diversidade entre nós.

O caminho árduo

Nossos passos vêm de longe! A mobilidade social de mulheres negras contêm pedras e abismos dignos de atletas de alto funcionamento, a diferença é que não temos preparadores, estamos por nossa conta e risco. Somos um grupo social historicamente arremessado à precariedade em todas as dimensões da vida. Sendo assim, frequentemente mulheres negras focam toda sua energia para fugir de ambientes de privação, para mudarem o cenário da própria história e finalmente sentirem-se “incluídas”. O reconhecimento das potencialidades parece uma forma de dar conta da invisibilidade vivida, seja social ou afetiva, imposição do ideal de feminino branco.

Não há espaços para romantização, “as guerreiras” enfrentam desde a síndrome da preta única ao tokenismo, sempre seremos utilizadas, de uma forma ou de outra. A mulher negra bem sucedida depara com questões extremamente complexas, primeiramente causam estranheza quando ocupam cargos de liderança e/ou estratégicos tendo suas capacidades questionadas a todo momento. É um estado eterno de suspeição, como se não pudéssemos pertencer a lugares diferentes daqueles que socialmente são destinados para nós.
Afetivamente, outro enorme problema. Não é raro relatos de conflitos familiares e dificuldade de encontrar um parceiro que atenda minimamente suas expectativas, assim, a mobilidade social e o sucesso profissional ao mesmo tempo é uma benção e uma maldição.
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas” diz Neusa Santos em seu clássico Tornar-se negro quando aponta a situação imperdoável que se encontram negras que ousam romper a linha do mundo branco, esse seria o preço da fuga da precariedade.

Não sou eu uma mulher?

A pergunta feita por Sojourner Truth no século 19 e reiterada na obra de bell hooks perdura até os dias de hoje, nossa luta pelo reconhecimento de nossa humanidade parece absurda porém real. Aliás, quem realmente somos? Quem nos tornamos? O que desejamos? De acordo com a psicanálise, o sujeito é aquele que deseja, que age, essa seria a força motriz para a manutenção da vida. É uma dificuldade ser sujeito numa estrutura que nos assujeita, nos interdita e nos arrasta para longe de nossa verdadeira essência devido às exigências de um mundo branco que se impõe a todo custo.

A mulher negra bem sucedida corre um maior risco de se perder de si porque sociedades estruturadas pelo racismo tem como modelo de sujeito o “modelo universal” direcionado pelo ideal de ego branco, muito bem explicado por Maria Aparecida Bento, sendo essa a normatividade. Como é impossível de ser alcançado, a trajetória da mulher negra bem sucedida é geralmente permeada de inconsistências e ela, em algum momento sofre uma cisão no self, abrindo mão de seu verdadeiro self em detrimento das exigências e a crueldade do ambiente em que está exposta e assume um falso self patológico. Adoece.

O resultante seria olhar para sua trajetória e não se reconhecer, estar tão longe de si e notar que tudo o que desejou até aquele momento tem mais conexão com as narrativas sociais apreendidas sobre o que é a felicidade do que o verdadeiro desejo intrínseco. Somos ensinadas a não desejar e aceitar a vida, algumas agarram-se a desejos superficiais tomando-os como verdades absolutas e no final sentem-se perdidas. Não sejamos hipócritas ao afirmar que viver bem é desejo superficial, não é sobre isso, e sim não ser somente sobre isso, mesmo porque na medida que as conquistas se dão, o vazio aumenta junto com a angústia, a dor e o sofrimento.

A verdadeira conquista e o preenchimento de si

Será que existe salvação para a mulher negra? E para a mulher negra bem sucedida? Qual a possibilidade de saúde mental e emocional?São perguntas de milhões. O que tenho é construído junto com a mulher negra em seu processo de psicoterapia/ análise reflexões e ressignificações de sua história e formas de potencialização. São mulheres que se abandonam emocionalmente e precisam urgentemente serem acolhidas com amorosidade. O desvendar do real desejo, o sentido de vida e o resgate desse verdadeiro self perdido como estratégia de sobrevivência. Na verdade, estamos bem cansadas de sobreviver e queremos viver plenamente. Sabemos que muitas de nossas irmãs possuem urgências significativas que devem ser atendidas de imediato, considerando as interseccionalidades de nossas vivências, contudo, para aquelas que chegaram lá, é preciso resistir um pouco mais a fim de alcançar uma condição interna capaz de nos proporcionar a felicidade e a liberdade.

Esse é um processo delicado, de rompimento de alianças e redimensionamento dos afetos. A cura da negritude se faz primordial, a paz com a própria história e a exaltação dos valores de uma ancestralidade muito potente e tão pouco reconhecida. As boas memórias são remédios surpreendentes, acreditem, nossas histórias não são só de tristeza, a alegria mora em nossa alma, basta encontrar. O cuidado de si de forma holística é outra estratégia eficiente, temos que ter saúde para viver bem, o corpo é nosso templo e nossa mente é nossa sacerdotisa. independente de religiões somos seres sagradas e esse é um encontro especial e curativo. A mensagem que fica seria o cultivo de ser bem sucedida com nós mesmas, essa é a única luta que vale a pena. Cuidem-se com seriedade! Uma mulher preta feliz é a maior das conquistas e também a maior vingança. Adupé!

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