A cor da culpa

Em 1894, Raimundo Nina Rodrigues, considerado pai da medicina legal no Brasil, publicava o livro “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, contendo duas severas críticas ao primeiro código penal republicano: a fixação da maioridade penal aos 14 anos, por ele considerada demasiadamente elevada; e, a crítica ao tratamento igualitário dispensado a negros e brancos.

De acordo com os postulados do médico maranhense, os negros teriam propensão genética para a criminalidade, porquanto não poderiam ser equiparados aos brancos.

Transcorrido mais de um século da morte de Nina Rodrigues – que até hoje dá nome ao IML da Bahia – suas teses permanecem inspirando um número assustador de atores do sistema de Justiça.

Em 1992, por exemplo, o então Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo manteve a condenação de um acusado porque a vítima se lembrava de que ele era preto, ainda que não lembrasse de seus traços fisionômicos ou de sua compleição física.

Ouçamos o tribunal: “Reconhecimento pessoal – Identificação baseada somente na cor – Validade – A Afirmação da vítima de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a afirmação de ser um deles de cor negra e reconhecê-lo, já que o reconhecimento se dá pela segura memorização visual de diversos traços característicos de uma pessoa, ou de um somente, a cor”. (TACRIM-SP, 12ª Câmara, apelação no 753.603/3, julgada em 21.9.92).

É preto, é culpado!!! Formulação análoga a esta aparece numa sentença da Justiça de Campinas que tem circulado na grande imprensa e mídias sociais: “Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”.

A conhecida expressão “cara de bandido, jeito de bandido” ilustra o credo popular segundo o qual o delinqüente pode ser identificado por suas características físicas, fenotípicas ou, no caso, raciais.

O detalhe é que a Constituição Federal determina que ninguém pode ser considerado culpado antes de sentença final e, além disso, o Código Penal prevê que a lei deve punir fatos, condutas, não pessoas, por suas características fenotípicas.

Decerto a decisão do TACRIM ou a sentença de Campinas, proferida em 2016, não refletem o pensamento do conjunto dos magistrados brasileiros.

Mas a pergunta é: quantos jovens negros tiveram suas vidas destruídas por decisões como estas, que em vez de se basearem em provas, indícios, na lei e no devido processo legal, rendem-se ao senso comum mais abjeto e grosseiro?

O silêncio e a omissão do sistema de Justiça diante do problema do racismo sujeitam a população negra, especialmente a juventude, a tribunais de exceção, julgamentos ideológicos, execuções sumárias nas periferias e toda sorte de truculência e tirania.

A sociedade tem o direito de exigir que os editais dos concursos públicos, os currículos das escolas da magistratura, do Ministério Público e das academias de polícia tratem do problema do racismo e preparem seus quadros para não refletirem, ao menos no âmbito profissional, os estereótipos raciais aprendidos socialmente.

Trata-se de tarefa que não pode ser considerada como panacéia para o problema mas irá representar, quando nada, um compromisso substantivo do Judiciário com a garantia da vida, da liberdade e da incolumidade física e moral dos jovens negros, brancos e quaisquer outros indivíduos que circulam pelas ruas das cidades e que acreditam que sua existência, por si só, não pode ser considerada um crime.

 

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Advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, ex-Secretário de Justiça do estado de São Paulo, Coordenador-Executivo do IDAFRO - Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras e colunista da Raça

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