“A CULTURA NOS LIBERTA…”

Por: Zulu Araújo

A afirmação acima foi proferida com toda ênfase em memorável palestra realizada por Graça Machel, grande liderança e ativista feminina africana e mundial, no Teatro Castro Alves, na cidade do Salvador, encerrando o projeto Fronteiras do Pensamento 2017, patrocinado pela Braskem, via Faz Cultura. Graça encantou a tudo e a todos com seu jeito meigo e transparente, porém firme e tranquilo de afirmar que as questões de gênero e racial passam, inevitavelmente, por uma nova postura de consciência coletiva e individual, além do necessário
empoderamento econômico desses segmentos. Para ela, não basta apenas apontarmos o dedo para os nossos algozes, faz-se mais do que necessário nos organizarmos e enfrentarmos estas situações de
cabeça erguida e convicção da vitória.

Ao longo de 90 minutos, Graça Machel discorreu sobre o olhar enviesado, equivocado e muitas vezes propositalmente desinformado, com que grande parte do mundo ocidental trata os temas do continente africano, incluindo-se aí o nosso querido Brasil. Ressaltou ainda, o quanto o universo africano é diverso, onde coexistem diversas civilizações que ora são complementares, ora se sobrepõe, e ora conflitam-se abertamente. Indicou com clareza as realidades políticas, culturais e religiosas absolutamente distintas, embora tenha
algo que os imanta e une, que ela chama de Ubuntu, ou a solidariedade “…onde a grandeza de um está na dignidade do outro”. Um sentimento complexo e delicado, quase inalcançável ou incompreensível para boa parte do mundo ocidental.

A cultura está em todo lugar

Ela transitou sobre o antiquíssimo fenômeno das migrações, registrando que o mesmo tem origens remotas no processo civilizatório da humanidade, mas não deixou de assinalar as principais causas que fazem desse fenômeno, nos dias de hoje, um problema dramático do ponto de vista humano. Apontou os conflitos armados e as catástrofes climáticas como os principais motivadores das migrações nos tempos atuais, mas indicou que a dimensão econômica continua sendo a principal razão da mobilidade entre os povos. E lembrou que parte do que ocorre hoje é fruto do processo colonizador e predatório com que o mundo ocidental se relacionou com o continente africano.

E disse de forma categórica: não adianta reprimir, criar barreiras, muros ou legislações, pois enquanto a desigualdade estiver presente entre os seres humanos, estes seres buscarão, inevitavelmente, a sua superação, mesmo que para tanto ponha em risco sua própria vida, como vem ocorrendo nos fatídicos trajetos pelos mares do sul.

Quando abordou a questão da globalização, ela fez questão de sublinhar que até o momento o benefício da globalização tem chegado a poucos e que a tão falada aldeia global ainda é para os eleitos ou privilegiados. E citou um dado contundente para exemplificar – 70% da população africana não possui acesso a energia elétrica, nos dias de hoje.

Embora não tenha negado em nenhum momento a importância e a inevitabilidade da globalização enquanto processo econômico, ela deixou claro que sem a democratização e a solidariedade humana para que os
seus efeitos benéficos estejam ao alcance de todos, teremos mais e mais conflitos, mais e mais migrações, cada vez mais dramáticos para a superação desse problema.

Mas, foi no quesito Direitos Humanos que ela se debruçou com maior atenção.

Não só discorreu sobre a importância dos direitos humanos enquanto um valor universal, como desceu a detalhes da sua importância quando tratamos da questão da mulher e da criança, em particular no continente africano.

Relatou de forma comovente a situação de desigualdade e muitas vezes de violência em que as mulheres africanas se encontram, embora tenha frisado que esta é uma situação que está presente em praticamente todas as sociedades humanas.

Do mesmo modo, indicou remédios e caminhos para que possamos enfrentar esta tragédia e teceu comentários duros sobre o papel das lideranças políticas no enfrentamento desta questão. E foi nesse momento que ela afirmou de maneira contundente: “A cultura é tudo aquilo que nos liberta(…) Não acredito que possamos chamar de cultura atos e comportamentos que violentam, aniquilam ou oprimem os seres humanos, em particular as mulheres e as crianças. Isto eu coloco no campo da tradição. E tradição pode e deve ser modificada, sempre.”

E foi adiante, condenando de forma veemente os chamados “casamentos prematuros”, que ocorrem em larga escala no continente africano e submete as meninas (futuras mulheres) a um processo de dominação e violência sem tamanho. Deixou claro que seu alvo, para alteração deste quadro, vai desde convencimento das autoridades tradicionais, passando por ações de políticas públicas de governo, mas apostando todas suas fichas, no trabalho junto à juventude, que segundo ela será a grande aliada para sepultar de uma vez por todas este tipo nocivo de prática tradicional.

Ao final, ela nos deixou uma mensagem de esperança

E sobretudo, de estímulo para continuar na luta. Ela afirmou com a tranquilidade e a doçura de quem acompanhou dois processos históricos do continente africano (a independência de Moçambique e a libertação da África do Sul do regime do Apartheid) que sem a mobilização da sociedade e participação dos movimentos sociais, não há caminho, nem há salvador.

Para Graça Machel, é fundamental que mobilizemos as pessoas a partir do que elas possuem de mais importante que é o humanismo. Não o humanismo retórico ou ingênuo, mas o humanismo que nos faz desejar o bem, a igualdade e a fraternidade.

Toca a zambumba que a terra é nossa!


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