A invisibilidade de nossos sentimentos e necessidades nos mata pouco a pouco 


*Fábio Pereira 

Nossa atual civilização é herdeira de outras tantas culturas que, apesar de características próprias, seguiram a mesma toada: enquanto uns mandam, outros obedecem. Enquanto uns dizem saber o que é certo, outros são alvos de uma tutela alheia à própria vontade. “A maioria dos governos, escolas, empresas – e até mesmo famílias – operam como estruturas de dominação”, já dizia o doutor em psicologia Marshall Rosenberg. 

Essas estruturas verticalizam relações, erguem pirâmides com base ampla, meio afunilado e topo pequeno, onde residem os que experimentam privilégios. Sufocando diálogos, esse regime de muitos regimes promove uma paz de mentirinha, onde se nega a existência de conflitos com a mesma ousadia que se ignoraria um hipopótamo numa sala de estar. “Não cometemos atitudes racistas” é só um trágico exemplo de como aprendemos a fingir que certas guerras não existem. 

É nítido e esperançoso que essa lógica do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” está mudando, mas as crises emocionais da nossa gente nos demonstram que a transformação social segue com os passos trôpegos de uma dança descompassada. Dois pra frente, quatro para trás. Tudo isso incomoda e nos estimula a uma desconexão de nós mesmos e do outro. Não percebemos nem falamos sobre o que sentimos, nem sequer entendemos o que precisamos. Falta compreensão que alivia e sobra julgamento que causa dor. Como essa falta de consciência prejudica nossa expressão autêntica sobre quem somos e inviabiliza a partilha de afeto, Rosenberg vai definir que somos adeptos de uma comunicação alienante da vida. O que está vivo em nós e nos outros ele chama de sentimentos e necessidades. 

“Temos sentimentos a todo momento. O problema é que não nos ensinaram a ter consciência do que está vivo em nós. Nossa consciência foi direcionada a nos fazer olhar para fora e ver o que alguma autoridade pensa a nosso respeito”, conclui. 

E ele acrescenta: “Fomos educados por pessoas que tentavam nos fazer sentir responsáveis por seus sentimentos para que nos sentíssemos culpados” (leia-se controlados). Para ele, uma grande ameaça a nossa necessidade de autonomia é entregar esse nosso poder aos outros: o poder de ditar o que devemos sentir, pensar e fazer. 

Homem não chora

Na obra Vivendo a Comunicação Não-Violenta, de onde todas as citações de Rosenberg neste artigo foram tiradas, registra-se também este depoimento do autor: “Fui à escola durante 21 anos e não me lembro de alguma vez terem me perguntado quais as minhas necessidades. O foco da minha educação não era me ajudar a ser mais vivo, mais conectado comigo mesmo e com os outros”. 

Um dia, uma professora encontrou o pequeno Marshall, aos 9 anos, escondido numa sala de aula vazia. Era hora de todos saírem da escola e ela estava fazendo a vistoria rotineira. Ao perguntar sobre o porquê ele estava se comportando daquele jeito, soube, entre um soluço e outro do menino, que ele não queria continuar apanhando dos mesmos garotos pelo fato de ser judeu. Eles, como nos dias anteriores, o aguardavam ansiosos lá fora. A professora resolveu agir. 

Diante daquele menino só, com medo, ela magnânima e sem outro tipo de repertório reproduziu um eco a soar desde muitas gerações de outrora: “Mas meninos não choram”. E ele teve de sair da escola como quem vai para a arena ter com os leões. Quando aquela “autoridade” ignorou que o menino estava possivelmente assustado, envergonhado (sentimentos) e precisando de um apoio que garantisse sua segurança, autonomia e respeito (necessidades humanas universais) ela acabou se tornando parte ativa daquela violência cotidiana. Na sala, com a professora, o pequeno recebeu a primeira bofetada do dia, talvez a mais dolorosa devido à frustração. Autoridades que não reconhecem sentimentos e necessidades estão sujeitas ao violento rótulo de tiranas. Por isso, urge que empresas e demais instituições incorporem a prática da Comunicação Não-Violenta (CNV) para compreender, acolher e ensinar essas lideranças a contribuírem com o que está vivo em si e nos outros. 

Vivendo desde cedo episódios como esse, Rosenberg ao crescer se tornou um jovem incapaz de reconhecer os próprios sentimentos ou necessidades. Nas palavras de seu biógrafo, era um valentão temido. Mas isso é tema para um próximo texto.

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não-Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

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