A ousadia dos atores negros brasileiros
Veja a história do ator negro brasileiro, Alex Mello que com muita ousadia faz carreira na Alemanha
TEXTO: Oswaldo Faustino | FOTO: Kai Joachim | Adaptação web: David Pereira
Um ator entre dois mundos. É assim que se define o performático Alex Mello, que atualmente vive na cidade de Colônia, na Alemanha.
Nascer e viver até a adolescência em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, região conhecida pela violência, pelo carnaval e por ser basicamente habitada por negros e imigrantes nordestinos, confessa o ator, marcou de forma definitiva sua vida e sua trajetória profissional. Foi ali que ele descobriu seu primeiro espelho, o poeta, artista plástico, difusor de cultura popular e teatrólogo Solano Trindade, e seu poema que se inicia com os versos: “Trem sujo da Leopoldina / Correndo correndo parece dizer / Tem gente com fome…”. A identificação foi imediata ao saber que, chegando de Pernambuco, Solano morou naquela cidade e se inspirou na mesma realidade: “Eu também viajava neste trem sujo rumo à Leopoldina e também não queria ser um preto manso”, afirma.
Questionador, conta que percebeu muito cedo, aos oito anos, quando foi impedido de participar da festa escolar pela chegada da primavera, que “é do homem separar, isolar, dividir o que não lhe parece igual”. Pouco tempo depois, também na escola, foi apresentado ao teatro e se apaixonou. Poder falar de fé, política e tolerância, através de “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, conquistou definitivamente o jovem ansioso por expressar pensamentos e emoções, ao mesmo tempo em que sentia a necessidade de denunciar as injustiças e os desmandos
Na fase da descoberta da sexualidade, da formação de personalidade, da necessidade de demarcar território, Alex se encontrava em meio a um universo repleto de influências contraditórias: candomblé, igrejas católica e evangélica, folias de reis, bailes funk, festas nordestinas, escolas de samba. Foi nesse momento que elegeu seu segundo espelho: o carnavalesco Joãosinho Trinta, que sabia lidar tão bem com os contrários, a ponto de transformá-los em espetáculo. “Era a fantasia abrindo espaço para o diálogo. E a partir daí comecei a transformar minhas inquietações em linguagem artística, partindo da minha própria história e de todas essas referências.”No entanto, continuavam as separações constatadas aos oito anos: “O ator negro no Brasil ainda traz o carimbo de apto a representar somente personagens subalternos, sem história. Renego esse carimbo, minha alma tem muitas marcas. Posso carimbar qualquer personagem que traga em si as contradições do humano”.
O caminho foi a criação independente que lhe garantiu o protagonismo, assumindo todos os riscos: “Fui lançado por mim mesmo em um abismo. Conscientemente, não me interessava a arma na mão e muito menos a chibata nas costas. Queria falar da realeza do negro, das facetas do humano. Queria falar de mim e dos meus, sob minha perspectiva, mesmo que brotada desse abismo”. Numa montagem de “As Criadas”, de Jean Genet, em 2003, foi convidado a fazer um intercâmbio cultural na Alemanha, por um ano. Era oportunidade única para aprender o idioma alemão, conhecer uma nova cultura e fazer teatro na terra do expressionismo, do teatro-dança, da performance. Diante das incertezas teve uma única reação: “Topei o desafio. Me enchi de coragem e fui, Macunaíma, para a terra de Joseph Beuys, de Fassbinder, de Heiner Müller. Fui com apetite antropofágico”.
Normalmente as mesmas expectativas. Mas Alex Mello afirma: “Não faço teatro de franquia. Quero fazer o teatro da liberdade. Não faço espetáculos para uma classe ou para um grupo especifico. Isso assusta, incomoda os olhos já viciados em enxergar e entender o negro e a sua identidade apenas de uma maneira. Há muito deixei de pensar em teatro como forma de agradar. Mais do que gostarem, quero que as pessoas sintam e que vivam comigo o ritual”.
Sentindo-se abraçado pela Alemanha e por seu povo, principalmente por não ter a sensação de ser visto como um “pássaro exótico”, ao completar o período de intercâmbio, foi convidado a permanecer por mais um ano. Montou, então, um espetáculo inspirado na vida do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, considerado louco por alguns, e gênio por outros. Esse seu terceiro espelho discutia a eugenia, os preconceitos e os limites entre a insanidade e a arte. “Eu queria falar de solidão, de fé, da exclusão desse homem que se comunicava através da sucata do hospício e de suas memórias. Fazer Bispo, na Alemanha, me aproximava de mim e daquela cultura que conseguiu ver, nessa figura, não a loucura, mas sim a solidão. Uma solidão colorida, mas ainda solidão.”
Há 10 anos na Alemanha, Alex realizou montagens como “Mercado Negro”, inspirado em poesias de Solano Trindade e em Hermann Hesse, falando de uma moeda de troca dentro de uma sociedade excludente: “Meus espetáculos emergem do submundo para o cotidiano, trazendo personagens marginais em sua essência, que surgem com uma mensagem de integração. São histórias de pessoas que não se deixam prender em nenhum tipo de camisa de força”. Também participou dos filmes “Zwischenwelten”, com atores de cinco países, cada um falando em seu idioma, e “Der 8. Kontinent”, dirigido por Serdar Dogan; do espetáculo de dança “Bolero”, montado pela companhia de Maurice Béjart; e de Dos amores e outros demônios”, de Gabriel Garcia Márquez, dirigido por Silviu Purcarete.
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