O Brasil vive momentos em que a cultura, a memória e a identidade precisam ser reafirmadas com força — e poucas cenas traduzem isso tão bem quanto ver Martinho da Vila e Emicida receberem o título de Doutor Honoris Causa, a maior honraria concedida por instituições acadêmicas. Mais do que um reconhecimento formal, essas homenagens ampliam uma reflexão necessária: o conhecimento produzido pelo povo negro sempre esteve aqui, moldando o país, mesmo quando não era ouvido pelas estruturas oficiais.
Martinho da Vila, com sua voz mansa e firmeza histórica, representa uma geração que fez da música um território de sobrevivência, orgulho e afirmação. Mais de cinquenta álbuns depois, sua obra não é apenas arte — é documento. Suas composições recontam o Brasil por dentro, revelam afetos, denunciam feridas e celebram a herança cultural afro-brasileira. Quando uma instituição acadêmica o reconhece, ela confirma aquilo que o povo já sabia: o samba é saber, é pesquisa, é memória coletiva.
Já Emicida, filho da periferia, é símbolo de outra geração que aprendeu a transformar dor em linguagem, silêncio em discurso, e ausência em presença. O que ele produz não cabe apenas no campo da música — também é filosofia, sociologia, pedagogia e, acima de tudo, humanidade. Seu olhar sobre o Brasil tem sido referência até em decisões judiciais, como quando suas palavras foram citadas em debates sobre racismo e direitos da população negra. Quando a universidade o homenageia, ela abre suas portas para saberes que por muito tempo foram considerados “menores”, mas que sempre explicaram o país de forma mais verdadeira do que muitos livros.
A força desses dois reconhecimentos não está nos palcos, nem nos diplomas entregues — está na mensagem. Num país onde a população negra ainda enfrenta apagamento, violência e exclusão, ver Martinho e Emicida receberem os maiores títulos acadêmicos é um gesto simbólico de reparação e futuro. É reconhecer que conhecimento não nasce só no laboratório, na biblioteca ou na mesa de pesquisa; nasce no samba, no hip-hop, no território, na vivência e no legado ancestral.
Essas homenagens também convidam a sociedade a olhar para si mesma. Por que demoramos tanto para valorizar esses saberes? Quantas histórias deixamos de registrar porque não cabiam nos moldes tradicionais da academia? E, principalmente: como construir um país mais justo se não aprendemos a honrar a quem sempre ensinou, mesmo sem ser ouvido?
Quando Martinho da Vila e Emicida se tornam Doutores Honoris Causa, não é apenas sobre eles — é sobre todos que vieram antes e todos que virão depois. É sobre entender que o Brasil é feito de muitas vozes, e que nenhuma universidade pode se considerar completa enquanto não abraçar todas elas.
Essas homenagens, portanto, não ficam no passado. Elas continuam ecoando, lembrando que a cultura negra não pede reconhecimento — ela o merece. E que quando o país finalmente reconhece isso, ele se aproxima um pouco mais da sua própria verdade.






