A presença da cultura negra na vida e na obra do Maluco Beleza
Texto: Drago
É uma coisa quase inevitável. Pelo Brasil afora, quando se vai assistir a uma apresentação musical ao vivo — de qualquer gênero de música, desde uma amigável pagodeira, nas profundezas de algum quintal, até um formal concerto de câmara, em algum “centro cultural”, bem localizado ou periférico, em alguma cidade grande ou nem tanto — e, lá pelas tantas, alguém da plateia grita: “Toca Raul!”
Toca Raul!
O que já se tornou uma espécie de “grito de guerra” de uma classe marginalizada (ou, ao menos, estigmatizada) evoca, de certo modo, as origens de um tipo de música tão associado a um comportamento social que, de tão banalizado, se torna até engraçado. Do mesmo modo que, certa vez, nos fez rir — a nós, brasileiros, e em particular, paulistas — o gaiato que bradou “Vai, Corinthians!” em um distante Primeiro de Maio, em plena Praça Vermelha, em Moscou, durante um desfile militar em comemoração pelo Dia do Trabalhador.
Esse comportamento social descrito é típico do sujeito irreverente: um espírito anárquico que, antes de afrontar (ou pior, confrontar) qualquer pessoa ou sistema, prefere expor que “a roupa nova do rei” simplesmente não existe. Ou, se existe, é tão ridícula que não merece ser levada a sério. Nesse contexto, o que importa não é o sotaque, mas sim o grito.
Quando nos deixou em 1989, Dom Raulzito privou-nos de sua sempre agradável companhia (tenho certeza de que involuntariamente). Porém, deixou-nos como herança seu grito e sua gaiatice, características das quais ainda temos muito a aprender. Ele mesmo as aprendeu a duras penas, porque a vida, de maneira geral, não é fácil para quem é cordial por natureza.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda — o pai do Chico — foi, e ainda é, muito mal interpretado ao afirmar em Raízes do Brasil que o brasileiro seria um “homem cordial”. “Cordial” refere-se ao coração; e o coração, sabemos bem, costuma opor-se à razão, com razões próprias que a própria razão desconhece (para citar outro famoso bardo).
Contrariando as convenções sociais de sua época, Raulzito foi um homem verdadeiramente cordial. Apaixonado por sua arte, não enxergava as barreiras ou distinções que o “senso comum” — um conceito autocontraditório, já que “senso” se refere às percepções individuais — impunha à vida e às relações sociais.
Raulzito era um autêntico rocker tropical que, desde o início, incorporou elementos da cultura e identidade negra em sua arte — imprescindíveis para sua proposta musical. Superficialmente, muitos o rotularam como uma espécie de “Elvis brasileiro”. Não que isso o desonrasse, mas poucos sabem que Elvis se tornou o que foi após um produtor declarar que ficaria rico ao encontrar um branco que cantasse como um negro. Assim, o sucesso de Elvis nasceu das influências negras, e Raulzito não foi diferente.
Embora não fosse negro, Raulzito nasceu em Salvador, uma cidade onde a maioria da população tem ascendência africana. Suas origens musicais estavam profundamente enraizadas na cultura negra, desde sua parceria com Waldir Serrão até sua banda inicial, “Raulzito e os Panteras”. Sempre fiel às suas raízes, ele recusava rótulos simplistas e mantinha uma relação crítica, porém respeitosa, com outros artistas baianos.
Curiosamente, seu primeiro grande sucesso comercial, Mosca na Sopa (1973), mesclava rock visceral com influências da umbanda, reafirmando sua identidade artística singular. Raul decorava suas casas com fotos de ídolos como Chuck Berry, Little Richard, Muddy Waters e Luiz Gonzaga — quase todos negros, com exceção de Elvis.
Como Michael Jackson viria a dizer muito tempo depois: “No matter if it’s black or white”. O que importa é ter algo a dizer — e, de preferência, acompanhado de boa música.
Assim sendo, Toca Raul!