A primeira miss negra

Veja a história de Vera Lúcia, a primeira miss negra

 

TEXTO: Adilson Gonçalvez | FOTOS: Adilson Gonçalvez e Reprodução | Adaptação web: David Pereira

Vera Lúcia, a primeira Miss Negra

Vera Lúcia, a primeira Miss Negra

Havia uma efervescência no ar naquele primeiro semestre de 1964, no então recém-criado Estado da Guanabara. Um golpe militar acabara de ser dado, iniciando-se uma perseguição política aos contestadores do incipiente regime. Em meio a toda celeuma, sua capital, Rio de Janeiro preparava-se para as comemorações de seu Quarto Centenário, no ano seguinte. Pois foi em meio a este confuso quadro que pela primeira vez uma negra ganhou o título de Miss Guanabara, concorrendo pelo Clube Renascença. Seu nome: Vera Lúcia Couto dos Santos.

O clube foi fundado em 1951, por um grupo de negros pertencentes à classe média, cansados das discriminações sofridas em outros clubes e agremiações do Rio de Janeiro. Criado como um espaço social próprio, onde os fundadores e familiares pudessem frequentar o Rena – como é conhecido o clube que hoje está instalado no bairro do Andaraí – sem qualquer constrangimento.

Embora para muitos a vitória de Vera Lúcia possa ter parecido uma surpresa, ela foi somente o ápice de uma linhagem de belas mulheres negras, tradição iniciada pelo Renascença no final dos anos 50. A primeira candidata, a comerciária Dirce Machado ficou em quarto lugar no Miss Guanabara; no ano anterior à eleição de Vera, em 1963, Aizita Nascimento também ficou na mesma colocação, mas levantou o Maracanãzinho, onde 25 mil pessoas gritavam “queremos a mulata”, contestando a quarta colocação, pleiteando o título. A partir daí, já podia se presumir que uma colocação melhor viria.

A disputa pelo posto de representante do Renascença no concurso de Miss Guanabara de 1964 foi marcado por uma renhida disputa entre Vera Lúcia e ninguém menos que Esmeralda Barros. De um lado a beleza meiga, delicada e juvenil de Vera, tendo como contraponto o estilo mulherão “quatrocentos talheres” de Esmeralda. “Ela era a favorita, pois tinha uma plástica respeitável, enorme traquejo de passarela, por já ter trabalhado em shows, mas acredito que ganhei mais na passarela do que pela questão da plasticidade. Acontece que ela entrou na base do ‘já ganhei”, ‘eu sou a tal’, ‘não tem pra mais ninguém’. Acho que o público e o júri notaram isto e foi aí que ela perdeu.

Logo depois de ter vencido o concurso Miss Renascença e Miss Estado da Guanabara, a pressão sobre Vera Lúcia se tornou maior. Um dia, em meio aos ensaios para o Miss Brasil, ela recebeu um telefonema, no qual uma pessoa que se dizia ser sua amiga e gostar dela, aconselhou a miss a desistir do concurso, pois, segundo esta pessoa, um grupo de senhoras da sociedade alugara mesas próximas à passarela somente para vaiá-la e desestabilizá-la. Além disso, o carnavalesco Evandro de Castro Lima teve seu nome retirado da lista de jurados, por declarar publicamente seu voto para Vera Lúcia. Em seu lugar entrou a jornalista Pomona Politis que, segundo boatos, não gostava de negros. No dia do desfile, o grupo de senhoras não apareceu, mas em meio à evolução de Vera na passarela, uma mulher, possessa, gritava: “Sai daí, crioula. Teu lugar é na cozinha. Não se manca, não?” A mulher histérica, gritava a plenos pulmões, perseguindo Vera entre as mesas.Após ficar em segundo lugar no miss Brasil, Vera Lúcia representou o Brasil no concurso Miss Beleza Internacional, em Long Beach, na Califórnia, conseguindo o terceiro lugar. Ainda em 1964, ela conquistou também o Miss Fotogenia.

Em 1965, ano da comemoração do Quarto Centenário da cidade, desfilou em carro aberto na Avenida Presidente Vargas, evento promovido pelo empresário Abrahão Medina, pai do empresário Roberto Medina. Sobre o natural assédio masculino às mulheres bonitas que se tornam famosas, Vera Lúcia afirma não tê-lo sofrido e por vários motivos. “Primeiro porque todos os convites eram direcionados ao meu pai; segundo o de estar sempre cercada por familiares e amigos e, terceiro, o de ser representante do Renascença, um clube social negro, o que cerceava os arroubos dos conquistadores de ocasião, os mais afoitos.”

Sua conquistas abriram muitas portas. Vera viajou para a Europa, Estados Unidos, Argentina e outros pontos do mundo, aprendeu a falar inglês e francês, foi tema de música – a marcha de João Roberto Kelly – mas, ao contrário de suas colegas Dirce Machado, Aizita Nascimento e Esmeralda Barros, não seguiu a carreira artística. Após a fama, ela casou e teve dois filhos – Cristiane e Rafael –, divorciou-se e há 33 anos trabalha na Riotur, empresa de Turismo da cidade do Rio de Janeiro, como assistente da diretoria de Operações e Eventos.

Sobre a eleição da angolana Leila Lopes para Miss Universo em 2011, Vera afirma ser muito bom para a autoestima da mulher negra que, independentemente de beleza, vem se impondo, deixando de se colocar em uma posição inferior. Mas ela lamenta, por exemplo, as conquistas esporádicas do título de beleza por mulheres negras. “Não quero dizer que somente negras devam vencer os concursos de Miss, mas acredito que existe beleza em todas as etnias. A Venezuela é um país que tem um grande contingente de negros, mas as misses que representam o país são sempre louras, de olhos claros, dando uma falsa impressão de uma Europa incrustada na América do Sul. Um dos meus orgulhos é o de ter mostrado uma outra face do Brasil para o mundo. Quando cheguei aos Estados Unidos para concorrer ao título de Miss Beleza Internacional, o máximo que eles esperavam era uma morena. Ficaram surpresos quando viram uma negra brasileira. Imagine isso, em plena época de luta pelos direitos civis dos negros americanos!

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