A SIMPLICIDADE NEGRA DO PODER
Conheça a embaixadora Gina Abercrombie-Winstanley, diplomata com mais de 30 anos de carreira.
Imaginem uma mulher, negra, de origem humilde, nascida nos Estados Unidos e que chegou ao topo da carreira, antes mesmo que nomes conhecidos como Colin Powell, Condoleezza Rice e Obama. Ou seja, abriu caminho para os seus no estado americano. Alguém respeitada por todos os presidentes americanos nos últimos 30 anos. Essa mulher existe e se chama embaixadora Gina Abercrombie-Winstanley.
Ela é diplomata com mais de 30 anos de carreira, que antes de ser nomeada pelo atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para o cargo de diretora de diversidade e inclusão do departamento de estado, foi a embaixadora dos Eua em uma região estratégica para aquele país.
Iniciou sua carreira diplomática servindo em Bagdá, Jacarta, Cairo e também serviu na república de Malta.
Esteve sempre ocupando cargos de alto escalão como: assessora do comandante das forças cibernéticas dos EUA, trabalhou em programas contraterrorismo como vice-coordenadora, também coordenou a maior evacuação de cidadãos americanos de uma zona de guerra desde a Segunda Guerra Mundial.
Conhecedora profunda dos problemas que afetam uma das regiões mais tensas do mundo, Gina Abercrombie-Winstanley presidiu o prestigioso Instituto de Serviço Exterior, onde os diplomatas dos EUA são treinados para trabalhar em áreas do Oriente Médio.
Suas atribuições naquela região incluíram o monitoramento de eleições na Faixa de Gaza e uma atribuição extraordinária em que ela apoiou ativamente a igualdade de gênero no Reino da Arábia Saudita, sendo um exemplo vivo deste trabalho, já que foi a primeira mulher a liderar uma missão diplomática lá. No departamento de Estado Americano, ela ocupou cargos importantes na Defesa e no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Antes disso, foi membro do Comitê de Relações Exteriores do Senado.
Recebeu os prêmios da Ordem do Mérito de Malta, do Departamento de Estado e de Honra Superior, incluindo uma honraria por “atos de coragem” durante um ataque ao Consulado Geral dos EUA, em Jeddah, na Arábia, Saudita que aconteceu no dia 6 de dezembro de 2004.
Essa mulher, nomeada há seis meses pelo presidente Joe Biden, escolheu o Brasil para sua primeira missão fora dos Estados Unidos nessa nova função e também escolheu a Revista RAÇA e o nosso CEO Maurício Pestana para dar sua primeira entrevista no exterior e agora você divide conosco esse momento, acompanhando essa conversa tão potente e importante para as relações raciais e diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.
RAÇA – A senhora é um exemplo para muitos meninos e meninas brasileiros negros de como alguém que conseguiu chegar ao topo. A Raça tem um público muito jovem. O que a senhora diria aos jovens que querem chegar à sua posição? O que eles devem fazer?
Gina Abercrombie-Winstanley – Há possibilidades. Não desista. Haverá obstáculos, mas não desista. E, também, como a melhor prática para progredir, eu os estimularia a se cercarem de pessoas que os ajudem – amigos e familiares que os ajudem nos momentos difíceis, pois haverá momentos difíceis. Mas é possível.
RAÇA – Essa é sua primeira viagem ao exterior depois que assumiu o cargo de Diretora de Diversidade e Inclusão do Departamento de Estado Americano. Por que escolheu o Brasil como primeiro destino?
Gina Abercrombie-Winstanley – Assim como os Estados Unidos, ou até mais, o Brasil é uma nação diversa. Nós temos coisas em comum e podemos ter maneiras diferentes de abordá-las, mas temos desafios similares. E eu vim ao Brasil para apoiar a nossa Missão Diplomática e também para aprender.
RAÇA – Seu currículo é invejável, tem uma extensa experiência em política externa com uma expertise e vivência no Oriente Médio, onde serviu em Bagdá, Jacarta e Cairo. O que aquelas regiões de profundas tensões étnicas e religiosas têm a apontar nas questões relacionadas à diversidade e tolerância para o Ocidente?
Gina Abercrombie-Winstanley – Cada uma à sua maneira, todas essas nações têm a sua parcela de diversidade, seja religiosa, seja de grupos étnicos. Também as questões de paridade entre gêneros e de mérito é algo com que eu também trabalhei em todos esses lugares. Nem sempre a interação foi fácil com todos os interlocutores que tive, mas enfatizamos que uma nação não pode de fato prosperar enquanto não aproveitar os talentos de todos os seus cidadãos. E, para isso, significa que tenha que haver oportunidades educacionais e profissionais para o benefício de toda a nação. Eu gostaria também de acrescentar que me parece claro para o mundo todo, incluindo os cidadãos americanos, que nós ainda não atingimos a perfeição nisso. Essas são conversas que estamos tendo, nós aprendemos com o que os outros países estão fazendo e que possa ser adaptável aos Estados Unidos também.
RAÇA – Eu posso dizer que sou um exemplo típico disso. A relação que eu tenho com o consulado americano há mais de 20 anos me ajudou muito a chegar aonde eu cheguei hoje, a estar falando sobre diversidade e inclusão na CNN Brasil. Então, eu concordo com esse investimento.
Gina Abercrombie-Winstanley – Acho que você mal pode imaginar quantos corações estão batendo mais forte e quanta esperança é gerada só pela sua presença na CNN Brasil. Eu me lembro, quando era mais jovem, quando a CNN teve seu primeiro apresentador afro-americano. Eu me lembro de estar diante da TV, ver aquele rosto negro e de sentir todo aquele entusiasmo, aquela sensação de ser visto e valorizado. E é maravilhoso que você esteja podendo fazer isso também para muitos aqui. É algo sensacional.
RAÇA – A senhora tem atuado como conselheira em várias organizações que estão fazendo a diferença no mundo, nas áreas de educação e desenvolvimento para lideranças, como o Forum For Education. Como fazer uma educação mais inclusiva dado o alto custo da educação de qualidade para os menos favorecidos como negros, mulheres e outras minorias?
Gina Abercrombie-Winstanley – Sim, o custo da educação também é uma questão delicada nos Estados Unidos. A administração BidenHarris e o Congresso estão discutindo quais as opções, por exemplo, se seria possível tornar as community colleges gratuitas – o Presidente Obama já tinha essa ideia. Mas a educação é mesmo muita cara e pode chegar ao ponto de ser proibitiva, se você não tiver de onde tirar os recursos financeiros para bancá-la. E com a carga extra de ter que trabalhar e estudar, isso pode ser exaustivo e inviabilizar a continuidade dos estudos. Eu mesma, quando estava na faculdade, tirei um semestre para trabalhar e poupar dinheiro para terminar de pagar a faculdade. Então, honestamente, essa também foi a minha experiência pessoal. E o que ocorreu foi que eu consegui um emprego interessante, estava ganhando um salário decente para uma jovem de 20 anos e pensei: “talvez seja melhor eu continuar somente a trabalhar”. Mas minha mãe disse que me “mataria” se eu abandonasse a faculdade. Então, eu não tive escolha. Voltei e terminei a faculdade. E, claro, ela tinha razão.
RAÇA – A diversidade e inclusão é um dos quesitos mais desafiadores do governo Biden. A senhora assume essa pasta em um momento de extrema tensão onde grupos de suprematistas brancos têm ganhado força em algumas partes do país. Como pretende lidar com isso?
Gina Abercrombie-Winstanley – É um momento desafiador. Mas sempre foi desafiador. Este é o único cargo que eu ocuparia na atual administração, foi o que me trouxe de volta ao serviço público. Porque eu acredito que agora temos uma confluência de tempo e foco, e também uma demanda, tanto por parte do governo, quanto dos cidadãos americanos, para fazer mudanças sistêmicas e em como nós estamos nos comportando como americanos. Nós falamos sobre nossos ideais, valores, potenciais e diversidade. Crianças são ensinadas sobre isso nas escolas e acreditam nisso. Então, acho que nós conseguiremos mudar, eu acredito nisso firmemente. Eu tive uma carreira maravilhosa, mas eu também passei por assédio sexual, sofri discriminação racial. Eu soube que algumas pessoas que eram meus colegas ou supervisores achavam que eu tinha menos capacidade por causa da cor da minha pele ou por causa do meu gênero. Eles estavam errados. Isso me permitiu fazer o que eu faço bem e provar que eles estavam errados, mas também abrir um espaço para aqueles que vieram depois de mim. Eu penso que eu e você, assim como outros, compartilhamos dessa responsabilidade de capitalizar e construir algo a partir desse sucesso que tivemos e passar isso adiante, para que outros saibam que eles também podem chegar lá. Portanto, seja incansável e exija os seus direitos.
RAÇA – No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, a população negra é maioria, cerca de 56% contra 13% nos Estados Unidos, mas o racismo estrutural de nossos países têm as mesmas características: violência policial, falta de diversidade em cargos estratégicos e problemas históricos nas áreas de educação e desenvolvimento humano. Que medidas conjuntas esses países poderiam tomar no combate ao racismo estrutural?
Gina Abercrombie-Winstanley – Uma das coisas que aprendi na minha carreira sobre como nós nos comportamos como diplomatas e cidadãos americanos que estão no exterior é que as parcerias mais efetivas muitas vezes não ocorrem nas esferas de governo para governo, mas no âmbito local. E que nós temos sempre que considerar qual é a situação local. Na minha experiência no Oriente Médio, por exemplo, essa interação tinha que ser de cidade para cidade, de organização para organização, para que as parcerias fossem, de fato, fortes e efetivas. Então, o que eu tenho aprendido da Missão [Diplomática dos EUA] no Brasil é sobre as muitas formas em que nós já estamos engajados e sobre esse novo compromisso para fazermos mais em termos do Departamento [de Estado]. Mas também em boa parte esse direcionamento deve vir dos brasileiros. O profundo conhecimento que vocês têm dos seus desafios e do que pode ser mudado para que se atinja melhores resultados é algo que vocês podem avaliar muito melhor que nós. Nós podemos ser parceiros, mas eu acredito no local para entender quais são as questões em particular. Para o governo, você pode dizer: “queremos a continuidade da democracia”. Mas para fazer isso acontecer, você deve trabalhar em nível local.
RAÇA – A RAÇA é a primeira e única revista negra da América Latina e está presente no país onde 56% da população negra se autodeclara negra, constituindo assim o maior país negro fora da África e o segundo maior país negro do mundo, perdendo apenas para a Nigéria. Que mensagem a senhora deixaria para essa população?
Gina Abercrombie-Winstanley – O que eu diria se estivesse falando com cidadãos americanos dessa mesma parte da população é que nós devemos nos esforçar por nós mesmos. Eu sou conhecida por enfatizar que, quando você tem uma grande porcentagem de um determinado grupo na base do status sócio econômico, seja de uma organização, de um país, ou de um governo, alguma coisa está errada. Porque as pessoas negras não se tornam menos inteligentes conforme ascendem nessa escala. Tem que haver algo que está nos segurando, evitando que subamos e tenhamos condição de contribuir. Por conta disso, todos perdem. Todos perdem.
RAÇA – A senhora adotou um tom muito humano. Essa será sua marca?
Gina Abercrombie-Winstanley – Acredito que parte do meu sucesso vem do fato de que eu vivi tudo isso, passei por situações de sexismo, de racismo. Eu gosto de uma frase que o Presidente Bush (filho) costumava utilizar durante a campanha dele, na qual ele falava do “racismo silencioso das baixas expectativas”. Como uma mulher negra, eu conheci pessoas que pensavam que eu não teria condições somente por ser negra. Que pensavam que eu não tinha as habilidades, que não seria possível eu ter os conhecimentos e a educação necessários. E isso pode ser devastador, pode ser ácido para a sua alma, perceber que as pessoas não acreditam em você. Portanto, você tem que construir a sua própria força para continuar. E ter pessoas que te apoiem para que você continue. Mas eu acredito que a minha credibilidade e resiliência vêm do fato de eu ser verdadeira e de eu ter tido, e continuo tendo, sucessos, mas também fracassos no meu caminho.
Então, continuem! Essa entrevista realizada com exclusividade para a revista RAÇA foi concebida pela Chefe de Diversidade e Inclusão do Departamento de Estado dos EUA Gina Abercrombie-Winstanley que esteve em São Paulo entre 30 de novembro e 2 de dezembro, onde se encontrou com diversos ex-bolsistas brasileiros de programas do Departamento de Estado norte-americano e conheceu melhor o que empresas, governos e a sociedade civil estão fazendo na área de inclusão no Brasil. Ela também aproveitou para visitar instituições culturais da cidade: entre as quais o Instituto Moreira Salles, onde prestigiou a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”. Em seguida, em visita ao Rio de Janeiro, esteve no Cais do Valongo, onde conheceu a história do patrimônio mundial cultural e herança africana. Em 2018, o governo norte-americano apoiou a conservação e revitalização do local a partir de um fundo de 500 mil dólares. O tour terminou no mural “Visões de resistência, sonhos de liberdade”, que retrata imagens de ativistas brasileiros e americanos. O projeto teve o apoio da Embaixada e Consulados dos EUA no Brasil. Ela também se reuniu com ex-Jovens Embaixadores e com representantes de empresas, governos e sociedade civil, para saber os avanços nos quesitos igualdade e diversidade.