A tecnologia precisa cruzar a ponte

Juliano Pereira

Quando eu tinha 13 anos, ganhei meu primeiro CD. “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais. Mas eu queria mesmo era um computador. Sem dinheiro, não imaginava a importância da tecnologia no meu futuro. Já o álbum, foi um soco no estômago. Lançado em 1997, “Os quatro pretos mais perigosos do Brasil” explodiram com suas letras reais: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial, a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são pretas”. Subversivo. “Música de bandido” diziam. Lembro da professora de português censurando quem escrevesse as letras. “Mas professora, o que tem demais?”. “Isso não é música”, ela replicava. “Não professora, isso aqui é poesia e realidade da periferia”, pensava em voz baixa. Pobre professora, era impossível censurar. Inevitável. Os Racionais passaram a tocar o tempo todo nos bares, nas rádios, na grande mídia. Corajosos, falaram sobre como a desigualdade social está ligada ao racismo estrutural. “Cruzaram a ponte” para escancarar um tema indigesto. Navalha na carne. Desde então, muita coisa mudou. Uma nova geração de rappers surgiu e encontrou o devido espaço ao sol. Já quando o assunto é tecnologia, ainda não “cruzamos a ponte”. Somos minoria por trás das linhas pretas de código. E isso é um problema, porque quando uma música ou software é criado, ele nasce com um viés, com a impressão digital de quem o criou. E, hoje, a tecnologia tem cor e gênero: ela é branca e masculina, e, muitas vezes, é a pele preta quem paga o preço. Vou dar exemplos. O reconhecimento facial para pessoas pretas têm uma alta taxa de erro. Recentemente, nos Estados Unidos, um homem negro foi identificado como o agressor de um motorista de ônibus(1). Ficou preso 9 dias, até confirmarem o engano. Oi, como assim!? Há também um estudo do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido envolvendo os oxímetros, usados durante a pandemia(2). Os aparelhos analisados para medir a oxigenação seriam menos precisos em pessoas de pele negra. Algumas pessoas podem ter pago com a vida. Essas histórias podiam ser diferentes se, junto com as cópias pirata ou não dos Racionais, cada jovem da periferia tivesse ganhado também um computador e, com ele, uma referência. Se o Steve Jobs fosse preto e brasileiro, quantas pessoas teriam cruzado a ponte, assim como eu? Teríamos centenas de milhares de pretos e pretas ocupando espaços de poder e de liderança? O fato é que a gente precisa falar sobre tecnologia como ferramenta de inclusão. Ou seremos excluídos (as) do futuro, mais uma vez. E esse abismo será exponencial com a Inteligência Artificial (IA). Porque ela é uma máquina de multiplicar. Um fermento digital que aumenta o que se coloca dentro, incluindo comportamentos e preconceitos. Se você colocar vento, ela cria vendaval. Quer ver? Digita “sorriso bonito” no Google. E por onde começar? Com inclusão e diversidade. Formando mais jovens na área, com mais referências pretas que entendam o seu papel como protagonista. A gente precisa buscar apoio de órgãos públicos, de empresas, das big techs, etc. “Mais mãos negras nos teclados” é o mote. E a gente precisa começar ontem. “Para que o amanhã não seja só um homem com um novo nome”, como canta o Emicida.

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