A viagem de retorno dessa mulher negra, outra..

Depois da experiência em Paris, alguém comentou do lado de lá, que haveria um convite ainda mais importante, e eu pensei: – O que pode ser mais impactante que a principal passarela de moda do mundo? Tolice minha, que me deixo envolver pelas hierarquias hegemônicas vez e outra… A viagem à Chicago foi um campo de descobertas sobre a relação entre as artes e os ativismos políticos, mas sabia que ainda não era isso, e no fim do mesmo ano fui convidada pela organizadora da Black Fashion Week Paris a integrar seu time na Adama Paris Fashion Agency, junto a designers do Senegal, Costa do Marfim, Marrocos, Estados Unidos, Nigéria, Haiti e Congo Brazzaville, para estrear na passarela do Angola International Fashion Show, em Luanda, Angola.

Tenho sido a primeira estilista brasileira nesses eventos que reúnem designers da Diáspora Africana e, oriunda de uma cultura negra bem semelhante às colchas de retalhos que foram referência da Coleção Vozes, cada experiência dessa tem sido mais uma linha nessa tessitura de narrativas cada vez mais complexas. Quando li o convite que trazia esse prêmio duplo, a imagem que me veio à mente foi exatamente a do mapa digital da escravidão africana que encontrei no Dusable – Museu da História Afro-Americana, em Chicago. Nesse mapa, a cada século que se passava, umas luzinhas que representavam os navios de tráfico, em sua maioria eram direcionados à Bahia. Era uma quantidade absurda de pessoas ali representadas, gente que morreu no caminho, que morreu nos castigos e na desumanidade fabricada, mas não morreu na cultura, nem na espiritualidade. Foi assim que me questionei: como em 2016 eu sou capaz de me reconhecer como mulher negra e me impactar com esse convite?

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Camarim da Coleção Asè, TCA, Salvador – BA. Fotografia: Edgar Azevedo. Modelo: Anita Costa.

E as lágrimas que saltavam dos olhos, como reconhecimento da dor e da beleza desses trânsitos, me lembravam que apenas aqui, na minha terra, outras narrativas foram compostas e que por meio das várias formas de cultos à ancestralidade nasceu o Candomblé: esses quilombos urbanos, responsáveis pela manutenção da vida, das culturas, identidades, da saúde mental e física, da fé e da espiritualidade de pessoas descendentes de África. Especialmente na vida das mulheres negras – que formaram os primeiros terreiros de candomblé no Brasil – o reconhecimento do seu protagonismo, possibilitou uma vivência no interior dos espaços religiosos, por vezes, distante do racismo cotidiano e estruturante. As religiões de matriz africana que com o tempo foram se redesenhando de muitas formas, expressam a força e a sensibilidade, assim como a beleza e os desígnios de mulheres como eu.

Cresci numa família negra e católica e, com o tempo, fui recuperando as memórias de um centro de Umbanda de um tio de meu pai que frequentávamos na infância e ao mesmo tempo me aproximando cada vez mais desse encantamento. A primeira festa de Xangô que fui, num terreiro de candomblé, foi arrebatadora, uma energia e um nível de beleza estética que jamais tinha visto. Assim se seguiram visitas a outras casas, outras descobertas e a aproximação cada vez maior com a Umbanda. Foi nesses espaços religiosos que a força da minha negritude ascendeu e o entendimento de uma outra perspectiva da vida me fez compreender o trabalho criativo como discurso e expressão de tantas questões tão íntimas.

Foi assim que nasceu a Coleção Asè, como registro do impacto da viagem de retorno dessa mulher negra, outra, que sob a força dos ventos e no fluxo das ondas do mar fez a travessia. E os dias em Luanda me trouxeram outras forças, depois do impacto da familiaridade com pessoas que nunca vi, do entendimento da importância das coisas que vêm de dentro, da compreensão de que essa viagem seria marcante na minha trajetória pessoal e profissional. E antes de refazer as malas para retornar ao Brasil, fui ao mar, e ao mergulhar me lembrei das vozes delas me dizendo: – E quando renascer do corpo de sua mãe, agradeça!

Carol Barreto Foto Helemozão 3

CAROL BARRETO

Mulher Negra, Feminista e como Designer de Moda Autoral elabora produtos e imagens de moda a partir de reflexões sobre as relações étnico-raciais e de gênero.  Professora Adjunta do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – FFCH – UFBA e Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC – UFBA, pesquisa a relação entre Moda e Ativismo Político

*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas

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