Afinal, o embranquecimento do rap é algo real?

O rap está cada vez mais disseminado no mundo e não é mais restrito aos negros há muito tempo, mas os brancos estão roubando o protagonismo?

Em 2014, uma das grandes polêmicas do Grammy Awards envolveu o prêmio de melhor música de rap. Apesar dos fortes concorrentes, quem levou o troféu para casa foi Macklemore & Ryan Lewis . A dupla, formada por dois americanos brancos, bateu nomes de peso como Kendrick Lamar e Jay-Z e levantou uma importante questão: afinal, o rap estava ficando muito branco?

Essa discussão chegou ao Brasil neste ano, quando o Lollapalooza Brasil escalou três artistas de rap para seu lineup: Criolo , Haikaiss e G-Eazy . Deles, o primeiro era o único negro. Com a popularização do hip-hop em todo o mundo, o gênero naturalmente deixou seu estigma do gueto e passou a atingir outras classes sociais. No País, jovens de classe média formam uma grande parcela de consumidores do gênero musical e agora também são produtores de conteúdo. Por um lado, essa diversidade é boa, mas, por outro, é um perigoso sinal de que o rap, assim como outros movimentos musicais, pode sofrer um processo de “whitewashing”.

Em tradução literal, “whitewashing” significa uma lavagem branca, um embranquecimento. Isso foi mais ou menos o que aconteceu com o rock and roll nos anos 1960: um gênero formado por negros, que foi inclusivo por décadas, acabou sendo tomado de assalto pelos brancos. Essa história é contada no livro “Just Around Midnight: Rock and Roll and the Racial Imagination” ,  que foi lançado em março deste ano nos Estados Unidos mas ainda não chegou ao Brasil.

Em entrevista ao iG , o autor Jack Hamilton discutiu as possibilidades do hip-hop passar por um processo semelhante ao sofrido pelo rock. “O ‘whitewashing’ é algo que definitivamente está acontecendo, mas não no mesmo nível que aconteceu com o rock ou o jazz”, explicou. Ele destaca que os negros ainda são os artistas mais importantes e conhecidos do gênero, mas vê sinais de uma cultura branca começando a se formar. “Existe uma cena de hip-hop só para brancos nos Estados Unidos, é algo bem estranho”, afirmou.

Entretanto, Hamilton não vê muitas semelhanças entre o que aconteceu com o rock e o que pode acontecer com o hip-hop. “Não dá para dizer que o rock era um gênero 100% negro, era interracial. O rap tem as raízes nos negros”, lembrou. Além disso, ele compara a velocidade com que os processos de embranquecimento acontecem. “No rock, isso aconteceu muito rápido. O hip-hop está aí há uns 40 anos e ainda não foi embranquecido”, disse.

Embranquecimento

Divulgação/Renato Stockler – Rincon Sapiência

Assim como nos Estados Unidos, o hip-hop brasileiro tem um histórico de luta pela igualdade racial e a promoção da causa negra. Nomes como Racionais , RZO e Sabotage  abriram caminho para que a nova geração seguisse com a mesma missão nos dias de hoje. Entre vários artistas que aceitaram a missão, está Rincon Sapiência . “O trabalho do rap tem sido bem feito no mundo todo, com anos de relevância no mercado da musica, não só do rap como da música preta no geral”, explicou o cantor em entrevista ao iG .

Apesar de acreditar que qualquer um pode ser adepto da cultura hip-hop, ele destaca que os brancos não têm a experiência e a vivência dos negros. “Os brancos vêm de uma classe social privilegiada, não tem certos engajamentos. Às vezes eles acabam trazendo uma leitura que não é a do hip-hop”, disse. “As pessoas brancas não têm uma preparação, um conhecimento pra entrar dentro da cultura. É a mesma coisa que eu querer dar aula de kung fu.”

Nunca houve um grande movimento contra brancos no hip-hop. Prova disso é que um dos mais respeitados rappers de todos os tempos, Eminem, é um americano branco. “O Eminem é um cara que tem consciência de seus privilégios e é respeitado pelos outros rappers”, comentou Jack Hamilton. Mas ver os brancos cada vez mais tomando o protagonismo é algo que incomoda, uma vez que o movimento é uma histórica forma de expressão e ferramenta de luta negra e, hoje, é um dos poucos espaços em que a população negra tem alguma forma de igualdade à branca.

No Brasil, grupos como Haikaiss e Costa Gold, formados por integrantes brancos, estão conquistando cada vez mais fãs. Sem falar especificamente desses artistas, Rincon Sapiência vê uma contradição em alguns rappers brancos. “Quando há uma cobrança em relação à questão racial, poucos deles têm o bom senso de dar o braço a torcer e reconhecer privilégios”, explicou.

“Eles são competentes, sim, isso não pode ser negado. Mas o privilégio de ser branco e de classe média no Brasil faz com que eles alcancem coisas com muito mais facilidade. Eu sou o exemplo disso. Com 31 anos e lançando meu primeiro álbum. Não foi aquela parada de eu estar na faculdade com os meus pais bancando e virar e dizer ‘vou largar a faculdade pra fazer rap’. Acreditando no trabalho fui me profissionalizando aos poucos e superando obstáculos”, explicou.

Questão econômica

O principal problema do embranquecimento do rap é econômico. Nos Estados Unidos, os rappers estão entre os artistas que mais ganham dinheiro. A lista da  Forbes dos músicos que mais lucraram em 2016 traz nomes como Drake, Dr. Dre, Jay-Z e Diddy, além de outras duas artistas negras: Rihanna e Beyoncé.

Reprodução/NY Post – Apesar de branco, Eminem é um dos rappers mais respeitados da cena

Não é segredo para ninguém que os negros, assim como as mulheres, têm desvantagens no mercado de trabalho. Um estudo divulgado em 2015 pelo IBGE indicou que os trabalhadores negros ganhavam, em média, 59% do que os trabalhadores brancos recebiam no País. Nesse cenário, a música e o esporte (o futebol no Brasil e o futebol americano nos Estados Unidos) são praticamente os únicos meios dos negros se sobressaírem. Quando artistas brancos começam a ser protagonistas de um movimento musical tradicionalmente negro, isso é um problema.

“O risco é econômico. A apropriação cultural está interligada ao lucro e a quem está lucrando”, explicou Jack Hamilton. A monetização do hip-hop não é algo de todo ruim, mas isso tem que ser vantajoso principalmente para quem está conectado às raízes do movimento. “Pra gente é importante que a arte seja um negócio também. Quando a gente fala de dinheiro, demanda, a gente fala de consumidores”, corroborou Rincon Sapiência.

O embranquecimento do rap também é uma consequência de sua popularização nas últimas décadas. “O hip-hop se tornou tão grande e bem-sucedido que perdeu sua ligação com as raízes. Hoje, o maior rapper do mundo é o Drake, que era um ator e sempre foi um jovem de classe média. Mas tudo bem, isso é o que acontece com a música em geral”, disse Hamilton.

Apesar da clara preocupação em relação ao embranquecimento, a popularização do rap não é algo ruim, mas precisa ser observada de perto para que o gênero não perca sua essência e sua força política. “O momento do rap no Brasil é muito bom. Temos artistas gays, mulheres, de alto nível do Ceará, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e em vários lugares. A máquina precisa se mover e a diversidade faz a máquina mover”, resumiu Rincon Sapiência.

Fonte: Gente – iG

 

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