Afro Fashion Day: primeira seletiva de bairros leva 81 candidatos ao Curuzu
O piso cinza da Senzala do Barro Preto, sede do Ilê Aiyê, no Curuzu, era a passarela de estreia para muitos ali. Sem ligação com qualquer agência de moda ou empresário, cada passo no chão de cimento queimado poderia significar um ato de mudança de vida. Realizada nesta quinta-feira (27), a primeira seletiva aberta para o Afro Fashion Day 2018 (AFD), que vai escolher modelos não profissionais para compor o casting do evento, surpreendeu não só pelo talento dos candidatos e candidatas, mas também pelas suas histórias.
Em um cenário inspirador para a beleza negra, onde dezenas de deusa do ébano já desfilaram, um jovem aprendiz do metrô de Salvador pode, por exemplo, sonhar em ser modelo internacional. Irlen Bispo Santos, de 20 anos, morador de São Cristovão, até já participou de alguns concursos. Mas, ultimamente, vinha trabalhando mesmo é nos bloqueios e postos de auto-atendimento do Metrô, além de ter iniciado os estudos como técnico de nutrição.
“Tá muito puxado trabalhar, estudar e ainda se dedicar à carreira de modelo. Ainda mais sendo negro. Então, ultimamente, eu larguei tudo. O Afro Fashion Day renova as minha esperanças”, disse Irlen. Estiloso, chama a atenção dos usuários dos trens. Na verdade, sempre fez sucesso. “Eu tinha uns 12 anos quando minha professora da escola chamou meus pais e disse que eu tinha pinta de modelo”, lembrou.
A missão das seletivas de bairro é identificar jovens talentos que ainda não sejam agenciados e coloca-los na passarela da 4ª edição do AFD, reconhecida como a maior iniciativa de moda afro do Brasil, este ano com 12 agências parceiras, onde desfilam roupas e acessórios criados por estilistas e designers baianos. Boa parte quase não tem passado algum na moda.
Bom lembrar que o AFD foi a primeira passarela para algumas modelos de sucesso atualmente, inclusive internacional, como Ana Flávia, primeira mulher negra a vencer o Ford Models e hoje com carreira fora do país. Diante de exemplos como esse, Laiana São Ricardo, 24 anos, moradora de Mussurunga, se animou para ir à seletiva, mesmo nunca tendo feito um trabalho sequer como modelo. “Todo mundo sempre me disse que eu tinha que ser modelo. Uma vez me chamaram para uma campanha publicitária e eu nem fui”, admitiu Laiana. “Agora resolvi tentar. Se rolar eu me jogo”, garantiu ela, que é formada em gastronomia.
Ao lado dela, Julia Emily, de 19 anos, tem uma loja de costura. Já até chegou a fazer trabalhos como modelo, mas havia abandonado a carreira há dois anos e meio. Na verdade, foi ao Curuzu encontrar com uma amiga que ia participar da seletiva. “Quando cheguei, minha amiga tinha ido embora. Aí o pessoal me viu e me puxou para participar. Imagine?”, revelou Julia, que mora na Santa Cruz.
Entre artistas, modelos profissionais e novos talentos prospectados, cerca de 60 pessoas vão participar do AFD. Além do Curuzu, onde 81 candidatos foram inscritos, as seletivas para modelos não agenciados vão percorrer outros quatro bairros da capital baiana – Plataforma (04/10), Tancredo Neves (11/10), Pelourinho (18/10) e Itapuã (25/10).
Manifesto
Muito mais do que um desfile de moda, o AFD é tido como um manifesto da beleza negra, um evento de afirmação. Tanto que os representantes das três agências de moda que que estavam no Curuzu nesta quinta, todos negros, diziam se doar a esse evento muito mais do que em outros. Até porque, é onde eles não só se reconhecem, mas também podem colocar seus casting para trabalhar sem preconceitos.
“Não são pouco os eventos que reclamam da quantidade de negros dos nossos castings. Quantas vezes já ouvi: ‘Poxa, a sua agência tem muitos negros’ ou ‘Você não acha que já temos muitos modelos negros?’. Isso quando um desfile tem dois ou três negros no casting”, disse Pepê Santos, da One Models, apoiado por Marlon Júnior, da The Agency, e Sivaldo Tavares, da PJT.
No caso de Sivaldo, o casting é 100% de modelos negras e negros. “Nosso trabalho, além de tudo, é um trabalho de mexer com a auto estima deles. Porque eles chegam até nós sem acreditar que podem ser a próxima capa de revista. Isso tem que mudar. Estamos em um momento de transição e o Afro Fashion Day só reforça isso”, falou Sivaldo.
O próprio produtor de moda responsável pela edição dos looks, Fagner Bispo, vê o AFD como uma quebra importante nos formatos e imposições dos desfiles tradicionais. “O Afro Fashion Day veio para reconfigurar a moda, vem para mostrar que existe um mercado de modelos negros em um país em que eles não têm muito espaço”, contou Fagner.
Inscrições
No ano passado, os vencedores foram Luciana Dantas, 15 anos, e Ivan Lima, 17. Ambos chamaram a atenção pela firmeza dos passos e beleza marcantes e ganharam a disputa concorrida com outros 29 candidatos que chegaram à final. Pelas cinco seletivas (Liberdade, Itapuã, Plataforma, Bonfim e Cajazeiras) passaram cerca de 500 pessoas.
Para participar, o(a) candidato(a) precisa realizar inscrição prévia e gratuita através do Sympla. O link para a edição da Liberdade é bitly.com/seletivascuruzue para a de Plataforma bitly.com/seletivasplataforma. Não é necessário residir no bairro para se inscrever. Podem participar jovens de 13 a 24 anos, moradores de Salvador e Região Metropolitana que não sejam agenciados.
Fonte: Correio