O físico Ernesto Mané embarca numa travessia geográfica e afetiva para conhecer a família paterna na Guiné-Bissau. Quinze anos depois dessa experiência, já diplomata e cidadão guineense, revisita o passado pela escrita, num gesto de reconciliação com as origens, ao publicar Antes do Início (Tinta-da-China Brasil, 2025).
É aquele livro que você lê e pensa: eu poderia ter escrito isso! Foi a sensação que me tomou logo nas primeiras páginas.
Eu poderia ter escrito e talvez você também porque a jornada de Mané é uma busca que todas nós, pessoas negras na diáspora africana, carregamos como desejo ancestral: o encontro com o nosso “momento zero”, o ponto de partida que revela o caminho e o rastro de onde viemos.
Hospedado na casa de parentes em Bissau, o narrador aguça a escuta para aprender com as tradições e crenças dos avós, tios e irmãos, enredando-se no cotidiano da família. Observa a precariedade das condições de vida no interior e os desafios da cidade grande de um país pós-colonial, cuja independência remonta à década de 1970. Para além dos impasses econômicos e políticos, percebe-se uma intensa influência cultural e religiosa inclusive vinda do Brasil. Em muitos trechos, tratado como “branco”, Mané descreve encontros e desencontros que revelam as múltiplas camadas entre o continente africano, a Guiné-Bissau e o Brasil.
Ao longo da narrativa, ele reúne fragmentos de memória e experiências para reconstruir sua própria história, a partir de conversas, viagens e observações sobre Bissau e Santo Domingo, terra natal de seu pai. Ele pode fazer isso para a maioria de nós, é um privilégio inalcançável.
Em uma imersão tão sensível quanto a de Saidiya Hartman em Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, o livro se concretiza em 256 páginas de escrita franca, que transita entre crônica, autobiografia e “escrevivência”, conceito criado e difundido por Conceição Evaristo. Mané não teme ser essa escrita. Tudo é narrado em primeira pessoa — sobre ele e, no fundo, sobre nós — naquilo que há de mais genuíno que a boa literatura pode oferecer, na minha rasa percepção.
O relato se torna prova de que a história não é linear, mas feita de desvios e inferências. Certamente, a Guiné-Bissau que ele encontrou na primeira década dos anos 2000 não é a mesma em que seu pai viveu a juventude, embora muitos desafios permaneçam. A influência europeia, assim como a brasileira, chama a atenção do escritor-viajante, que escolhe não fazer nem publicar fotos prefere sentir e escrever.
A todo instante, a busca principal se impõe. Ele narra para si as experiências dessa travessia, na qual vai se tornando um “homem grande”.
O meio do livro é, sem dúvida, a parte mais vibrante. Nessas páginas pulsa a efervescência das descobertas: o toque no solo dos ancestrais, o sabor do vinho de palma, as conversas em crioulo e o reencontro com a família em um país que ainda sonha com dias melhores.
Nos capítulos finais, a história ganha outro ritmo. Memórias e presente se misturam de tal forma que, se você não estiver atento, pode sentir que perdeu algo. Eu, nos meus dias de trabalho intenso, precisei voltar algumas páginas para me localizar na grata surpresa de reconhecer o t = 0 como início, fim e recomeço, ponto que ancora a ancestralidade do autor e sua descendência.
Antes do Início é um livro sobre voltar mesmo quando isso parece impossível. Um texto que transforma a memória em território e a palavra em travessia.
Essa publicação é fruto de uma parceria especial entre a Revista Raça Brasil e o Fórum Brasil Diverso, evento realizado pela Revista Raça Brasil nos dias 10 e 11 de novembro, que celebra a diversidade, a cultura e a potência da música negra brasileira. Não perca a oportunidade de participar desse encontro transformador — inscreva-se já www.forumbrasildiverso.org
