Em uma noite que deveria celebrar a arte, a cultura e a ancestralidade, o que se viu foi o reflexo de uma ferida ainda aberta na sociedade brasileira. O músico mineiro Sérgio Pererê, um dos grandes nomes da cena cultural afro-brasileira, foi atacado virtualmente após se apresentar em uma igreja católica em Ouro Preto. Mais do que críticas à sua música, o que ele recebeu foram acusações carregadas de intolerância, preconceito e racismo religioso.
A apresentação fazia parte do Festival de Fado, tradicional na cidade histórica, e foi realizada com a devida autorização da Arquidiocese. Mesmo assim, um vídeo publicado nas redes sociais pela influenciadora Fernanda Rocha — com insinuações de que a apresentação “profanava” o templo — viralizou e atraiu uma onda de ataques que extrapolam qualquer crítica artística ou religiosa. O recado era claro: ali, naquele espaço considerado sagrado, ele não deveria estar.
Pererê não levou batuques, nem rituais. Apenas voz e violão. Ainda assim, isso bastou para que sua presença incomodasse. E quando um corpo negro incomoda apenas por existir, é preciso reconhecer: estamos diante do racismo.
Mais que uma ofensa pessoal, os ataques a Sérgio Pererê evidenciam uma estrutura social que ainda tenta apagar expressões negras da vida pública — mesmo quando essas expressões são parte legítima da identidade brasileira. O mesmo país que diz celebrar a diversidade, que reconhece os reinados e congadas como patrimônio cultural, ainda reage com repulsa à presença negra em certos espaços. Especialmente quando essa presença é afirmativa, potente e simbólica.
A Justiça já analisa o caso como possível crime de racismo religioso. Ainda assim, o caminho da reparação é longo. Porque o verdadeiro desafio não é só jurídico: é cultural, histórico e espiritual. É reconhecer que o racismo religioso fere não só indivíduos, mas a nossa própria identidade enquanto povo.
Sérgio Pererê não subiu ao altar para dividir, mas para unir. Sua música fala de amor, de memória, de fé. E se há algo que deve ser considerado profano, talvez seja a tentativa de calar vozes que, por séculos, foram silenciadas.
Esse episódio nos convida a refletir: quantas vezes o Brasil ainda vai tentar apagar a beleza daquilo que o construiu? Quando vamos entender que fé não tem cor, e que a presença negra é também sagrada?