BA x VI: racismo não é motivo para piada
Eram marcados 28 minutos do segundo tempo. O zagueiro do Bahia, o branco Lucas Fonseca, tapou o nariz, apontou para o preto Kanu, zagueiro do Vitória, e disse “você tem bafo”, abanando as mãos para sinalizar um suposto odor. O fato inusitado foi flagrado na transmissão e tratado como piada e mera reclamação pelo apresentador Tadeu Schmidt no programa Fantástico da Tv Globo.
Lucas Fonseca é conhecido por deferir ofensas nada comuns. Faz parte da índole do zagueiro atacar a moral do adversário e tentar desestabilizá-lo de forma grosseira. No ano de 2016 xingou a esposa do atacante Kieza no clássico. Passou despercebido o caso de machismo e misoginia contra alguém que sequer entra em campo. Tudo bem, é um saco ouvir aquelas ladainhas politicamente corretas de jogadores, mas essas ações não têm nada a ver com polêmica, é ofensa mesmo, a arma que resta para um atleta relativamente fraco.
Mais uma vez ele passou do ponto, e muito. Qualquer outro lugar do mundo o caso seria tratado imediatamente como racismo. Deve ser só no Brasil que racismo é algo que todo mundo sabe que existe mas ninguém enxerga em lugar nenhum. Só aqui as infelicidades acontecem geralmente com pessoas negras e não dão em nada. Só no Brasil o corpo branco humilha um corpo preto de forma incomum e fica como aleatório.
Nesse caso, esquecemos que umas das estratégias mais recorrentes na história é rebaixar o corpo negro a algo fétido. Não precisa falar “preto fedido” para ser racismo, basta um mínimo de contexto, conhecimento e interpretação.
Mau hálito geralmente é fruto de problema estomacal. Ninguém está isento de passar por isto alguma vez na vida. É bem possível que atletas de alto rendimento tenham com mais frequência porque tomam um monte de vitaminas que afetam o estômago. Enfim, deve ser algo comum. Ainda assim não é possível saber se Kanu estava realmente com bafo, ou mesmo se era algo de tamanha intensidade. Mas não é loucura imaginar que o gesto foi pensado por Lucas Fonseca para afetar um adversário que tinha feito um gol e lidera seu time.
O caso tem elemento contextual curioso. Os dois zagueiros chegaram às finais do concurso Gatos do Baianão da Tv Bahia, afiliada da Globo. Kanu foi um dos poucos pretos de um concurso que parecia ser de um campeonato na Suécia. Tratar Kanu como alguém fedorento é um tiro certeiro na sua imagem, permeada por espontaneidade e provocações ao rival. Qualquer pessoa ao vê-lo falando vai lembrar da cena. Deixa de ser o galã preto, para o ser o preto fedido.
Kanu parece estar propenso a enfrentar a situação. Muitas vezes só nos damos conta do racismo após o ocorrido. É um ato que costuma pegar as pessoas desprevenidas. Kanu conheceu o racismo na Bélgica e no Brasil – por sinal, em 2015 ele foi alvo de ofensas racistas em redes sociais por declarar que a Fonte Nova era um estádio público após o triunfo de 3×1 contra o rival. Sabe as dificuldades de superar o escamoteamento brasileiro.
É o momento de todos apoiarmos, independente do time que torcemos. Kanu não pode passar pela situação do goleiro Aranha, que ficou um bom tempo desempregado depois de denunciar o racismo na torcida do Grêmio. É possível que não dê punição alguma, quase ninguém é punido por racismo no Brasil, e se tiver, não vai mudar muita coisa em campo, porque ele é uma atleta relativamente fraco e reserva nos jogos decisivos que vêem pela frente na Copa do Nordeste e Campeonato Baiano.
Só é inadmissível que a imprensa não abra um debate sobre o tema. Trazendo especialistas para falar do assunto e apuração sobre outros casos de racismo no futebol mundial. Racismo não é piada.
*Pedro Caribé é jornalista, mestre e doutorando em comunicação pela Universidade de Brasília