COLORISMO OU RETROCESSO?
O episódio já noticiado aqui na revista RAÇA envolvendo a cantora Fabiana Cozza, negra (filha de mãe branca e pai negro) obrigada a renunciar ao papel de interprete no musical – Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro, por não possuir a pele suficiente preta, segundo alguns ativistas do movimento negro para representar Dona Ivone Lara, (recentemente falecida), evidencia de forma dramática os equívocos monumentais que parcela do movimento negro brasileiro está padecendo. Pior, é mais uma prova dos enormes retrocessos que a sociedade brasileira como um todo está vivendo neste grave momento de crise social, política e econômica.
Em carta/manifesto emocionante, Fabiana Cozza, antiga ativista não se intimidou e denunciou: “Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.”
É um relato duro e comovente dos estragos monumentais que uma militância racial despolitizada, temperada pelo radicalismo epidérmico, pode causar contra os nossos mais queridos e aguerridos companheiros/as. Fabiana, em verdade é mais uma vítima do anacrônico racialismo, agora travestido de “colorismo” que foi a mola mestra utilizada pelos colonizadores para nos dividir ao longo de anos e anos.
Não por a caso no Brasil temos 35 variantes do ser negro: escurinho, moreno, moreno claro, moreno escuro, marrom, mulato, sarará, cor de formiga, pardo e por aí vai. Todas elas estabelecidas a partir da visão do colonizador e com o objetivo claro de estabelecer a hierarquização racial por meio da cor da pele. Melhor dizendo, é a contraparte do fenômeno do branqueamento tão exercitado no Brasil, onde ser mestiço é a negação da presença negra e não a mistura de negro com branco.
Há mais de 40 anos, o movimento negro brasileiro, percebendo esta armadilha política, superou esta questão considerando que negro eram todos aqueles que se autodeterminassem e que fossem vítimas da discriminação racial. É daí que o IBGE retira os ensinamentos para considerar que (preto + pardo = negro) resolvendo um problema não apenas de ordem sociológica, mas também de ordem política. Era o inicio da derrocada da tão propalada democracia racial brasileira.
Por isto mesmo, é duro ver parte da juventude negra defendendo teses que se assemelham as do nosso opressor. Basear-se em conceitos como “pretas retintas” e pô-las em confronto com as “socialmente brancas” como gostam de nomear os mais radicais, não é militância racial, é uma insanidade mental que presta um enorme desserviço à causa da promoção da igualdade.
Em verdade, racialismo ou colorismo, como está na moda chamar, é uma estupidez política. Conforta apenas o radicalismo pueril daqueles que não conseguiram entender a complexidade da vida e muito menos querem entender a generosidade da igualdade. É a representação mais primitiva do ódio, da vingança e do revanchismo e da importância, além de ser estimuladora das manifestações mais torpes do ser humano, como o racismo. Daí, ser importante chamar a atenção: não existe purismo racial, a não ser para os racistas.
Lamento profundamente que o racismo brasileiro tenha nos levado para este beco sem saída e espero, sinceramente, que tenhamos a lucidez para refletir sobre este equivoco, refazer nossa agenda e ampliar nossos propósitos sempre no sentido do acolhimento e da inclusão.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
Zulu Araujo
Foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas