Com a palavra, Marise de Santana

No mês que celebramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e também da Mulher Negra Brasileira (25 de julho), resolvemos abrir o espaço desta coluna para disseminar o pensamento negro e feminino, por meio de duas entrevistas.

A primeira, com a professora, pesquisadora e escritora negra Marise de Santana, organizadora, ao lado de Josildeth Gomes Consorte, do livro Mulher Negra e Ancestralidade, lançado em 2023 pelo Grupo Editorial Summus. E, a segunda, a ser veiculada na próxima sexta-feira, com a Dinha, Maria Nilda de Carvalho Mota, que é poeta, editora independente e pós-doutora em Literatura e Sociedade. 

Marise de Santana é graduada em Pedagogia, mestre e doutora. Atua como professora nível pleno da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), onde também é coordenadora do Programa Stricto Sensu em Relações Étnicas e Contemporaneidade e do curso de Pós-Graduação em Antropologia com Ênfase em Culturas Afro-Brasileiras do Odeere-Uesb. Na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), é professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenho, Cultura e Interatividade. Tem experiência nas áreas de Educação e Antropologia, atuando nos temas de Legado Africano, Cultura e Identidade; Cultura Negra; Trabalho e Formação Docente; Processo Ensino-Aprendizagem; Antropologia das Populações Afro-Brasileiras; e Educação das Relações Étnicas.

Revista Raça. Quando e porque você começa a escrever sobre mulheres negras?

Marise de Santana. A escrita é um processo resultante das oralituras, o que me faz escrever tomando como referência o meu pertencimento.  Eu sou filha de Ernestina e neta de Salu , duas mulheres que me educaram. Meu pai se desincumbiu da sua paternidade antes de eu nascer. Como acontece com a maioria das mulheres negras no Brasil, que criam seus filhos e filhas sem a figura do pai, com minha mãe não foi diferente. Mulheres negras, sempre contam com o auxílio de outras mulheres na educação das suas crias. Então, minha avó e minha mãe vão me criar, no Recôncavo Baiano, onde a presença dos legados africanos é muito forte. Na minha vida, é decisiva essa formação étnica e racial de presença africana. Então, escolho para estudar no doutorado “como professores e professoras trabalhavam em cidades em que fortemente existe a presença dos legados africanos?”. Começo a tomar os dados de pesquisa e não aparecem homens como sujeitos, só aparecem mulheres professoras. Embora a pesquisa tivesse como objetivo central os legados africanos, a presença das mulheres não se limitou ao lugar de objeto de pesquisa, os dados coletados nos sinalizam aportes fundamentais para que pudesse aprofundar o olhar sobre as mulheres negras em outras produções, como artigos, palestras e livros. Posso aqui citar, o livro “Mulher Negra e Ancestralidade”. No referido livro escrevi dois artigos, um deles, expressa a forma da mulher negra se prover em profissões consideradas ancestrais. No outro artigo, falo sobre feminilidade de mulheres Negras de Candomblé que são cabeças de Oboró. Como mulher negra de Candomblé, me sinto à vontade para atender ao desafio de falar de mulher, sem a pretensão de tomar a categoria gênero para o debate. 

Revista Raça. A quem interessa o pensamento negro e feminino? Como ele contribui com a sociedade brasileira? 

Marise de Santana. Eu entendo que o debate sobre as mulheres negras e o feminino seguem no bojo de um debate complexo. Em muitos grupos da sociedade brasileira patriarcal, o feminino está intrinsecamente ligado à mulher, à alimentação, à intuição, à maternidade, à passividade e à subjetividade. Nessa mesma sociedade brasileira, para grupos que seguem a estruturação de aprendizado mítico dos legados africanos, não há o debate do feminino assumindo a categoria generificada de “mulher”; nesses grupos, com conhecimentos africanos as Iabás não precisam pedir permissão para incorporar tomando os corpos dos homens. Assim como, os orixás considerados masculinos, não precisam pedir permissão para incorporar tomando os corpos das mulheres.  

Em “A invenção das Mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero” a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí critica a tradição ocidental que toma os aspectos biológicos como únicos para se pensar a organização do mundo social. Ao tomar as referências africanas, ela aponta outras maneiras de compreender o papel social da mulher. Neste sentido, esses saberes dos legados africanos, solapam as estruturas sexistas reafirmando a necessidade das lutas negras contra profanações sexistas e racistas. Essas profanações sexistas, não é apenas luta das mulheres em favor delas próprias, mas de toda uma sociedade que se quer transformada. Penso que debates sobre a organização social das mulheres negras tomando como referências as formas de profanações, as quais as mesmas são submetidas, nos apontam encruzilhadas como espaços desafiadores para pensar sobre uma sociedade menos perversa com as mulheres, em especial, as negras.

Revista Raça. Qual a importância da ancestralidade para as narrativas negras e femininas?

Marise de Santana. Como estudiosa de legados africanos e etnicidades, eu preciso atentar para o texto étnico que aparece quando falamos em ancestralidade, ou seja, com códigos de saberes ancestrais que uma determinada pessoa ou grupo carrega.  Nesse sentido, como mulher negra, tomo os meus códigos para falar sobre a importância da ancestralidade para as narrativas negras e femininas. Nesta entrevista, iniciei afirmando que a escrita passa por um processo de oralituras, ou seja, minha escrita, assim como minhas narrativas, enquanto mulher negra, são frutos de uma pensar ancestral. Assim sendo, ser mulher, mulher negra, candomblecista, zeladora de legados africanos, professora, mãe, imprime nas minhas ações códigos ancestrais que impregnam a minha identidade étnica.

Ao escrever sobre “Mulheres negras do Recôncavo da Bahia, identidade étnica, profissão e ancestralidade “, no livro ” Mulher negra e ancestralidade” (2023), tomo alguns pressupostos neste constructo textual, para pensar a relação entre as profissões de mulheres negras (baianas de Acarajé, costureiras de roupas de axé) e suas formas de sustentar a si próprias e suas relações com a identidade e ancestralidade. Neste sentido, vou dizer que a construção de conhecimento para fazer roupas de axé, assim como, para fazer Acarajé, liga-se a ancestralidade e a identidade a partir da Constituição histórica com conhecimentos numa perspectiva que o passado é referência para o seu presente e futuro, como marca de resistência individual e coletiva. Essas mulheres invocam linguagens e valores próprios a fim de constituírem a sua identidade e de outros do grupo. Portanto, as mulheres sujeitas dessa pesquisa, que deu origem ao referido texto, reafirmam suas identidades na relação com a sua ancestralidade.

Revista Raça. Nesta trajetória dando, visibilidade para as mulheres negras, quais são os seus principais desafios 

Marise de Santana. As mulheres negras, ao enfatizar a luta racial, o que elas sempre deixaram de lado foi, uma luta em prol delas próprias. Então, a luta racial terminou fortalecendo os homens. Não podemos deixar de dizer que muitos dos homens negros foram educados para serem homens sexistas. Além disso, essa mulher negra vai lidar com os racismos das mulheres brancas; sendo assim, a mulher negra termina se sentindo desamparada, porque ela tem, dentro dessa luta, essa dificuldade de adesão, de questões que são próprias para uma luta sexista. Então, de modo geral, as mulheres negras têm, na verdade, vulnerabilidade, embora não possamos atribuir a essa vulnerabilidade, apenas a questão da escolaridade, porque mesmo as mulheres escolarizadas, elas também estão sempre vulneráveis. É óbvio que quando se trata daquelas que não têm a escolaridade, daquelas que têm uma condição de classe inferior, a vulnerabilidade é muito maior. Precisamos aqui pensar, por exemplo, que a vulnerabilidade que as mulheres sofrem quando elas têm que enfrentar, por exemplo, o sistema de saúde muito precário para as mulheres negras e pobres. 

Esse é um momento que nós devemos cada vez mais falar sobre as mulheres e trazer para as reflexões, pensando acerca dos desafios que as mulheres vêm enfrentando, especialmente as mulheres negras, porque ser mulher, antes de tudo é enfrentar alguns preconceitos que não obviamente de hoje, eles se arrastam séculos a séculos. A gente não pode pensar que mulheres brancas são atingidas da mesma forma que mulheres negras. 

E é, com esse entendimento que podemos pensar nos desafios das mulheres negras na sociedade brasileira, nesse sentido, o maior desafio está em se voltar para uma luta contra a opressão sexista que silencia a mulher negra, se reveste de violência de várias ordens, dificulta oportunidades de emprego, mesmo para as mulheres escolarizadas, reafirma preconceitos que geram discriminações. Em especial eu destaco aqui as zeladoras de legados africanos que estas vêm sofrendo e sempre sofreram muitas discriminações, elas são chamadas de mães de chiqueiro, elas são ditas como mulher imagem do diabo. Portanto, elas sofrem muitas profanações sexistas. 

É com o pensamento de uma luta de transformação que precisamos debater sobre as condições das mulheres negras na sociedade brasileira, considerando sua história de escravização, de educação para a branquitude, e como nos alerta. A situação da mulher negra na sociedade brasileira passa pelo que bell hooks chama de desvalorização da natureza feminina negra, resultado da exploração sexual das mulheres negras durante a escravidão e continua acontecendo séculos depois. 

Revista Raça. A academia costumava dizer que uma boa pesquisa precisa ter objeto e pesquisador distante, mas você fala exatamente de mulheres negras como você.  Esse pensamento mudou? O que você poderia dizer sobre isso?

Marise de Santana. Veja, para começar a falar sobre essa pergunta que você me faz, eu não posso deixar de dizer que como fruto da minha pesquisa de doutorado, eu vou ser uma das fundadoras de um órgão de Educação das Relações na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, que vai trabalhar com ensino pesquisa e extensão pensando em, subverter, a ordem das políticas universitária.  

Então, através das muitas atividades, do órgão, tomamos para nós a incumbência de subverter a ordem universitária, imprimindo debates étnicos, raciais, de gênero e sexualidade; marcando as nossas posições  políticas e epistemológicas.

Nossos estudos, giram em torno das fronteiras entre negros e não negros, mulheres e homens, mulheres negras e não negras. São debates, que servem para pensar nos limites entre diferentes grupos, suas dicotomias, assimetrias, estranhamentos, mas também resistência subversão da hegemonia, lutas e insurgências, os diálogos entre os núcleos conservadores da sociedade e os coletivos vários, como coletivos negros, coletivos de mulheres negras, movimentos sociais e religiosos, associações. Falar de questões raciais e étnicas negras, é instigar o conhecimento acadêmico ocidentalizado a se colocar em um movimento de desaprendizagens das narrativas colonizadas, sobre mulheres negras e outros grupos. Esse debate, é na verdade algo que está intrínseco a minha formação de militância, mas também a minha formação profissional acadêmica, que aqui eu preciso ter cuidado, porque se costuma dizer que a militância é uma coisa e o acadêmico é outra coisa. Como se equivocadamente, quisessem dizer que a militância fizesse parte de elementos que estão nas ancestralidades e que a formação acadêmica é uma outra coisa, e eu entendo que, a militância e o profissional acadêmico, eles precisam se aliar. E é isso, que tem sido feito por muitos de nós que estamos nessas lutas sociais atuando com pautas tão necessárias para uma sociedade que valorize a diferença.

Crédito da foto: Edson Dias Ferreira

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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