Revista Raça Brasil

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Com quantos “E aí negão” se faz um racista?

Meus filhos queridos, vocês ainda são muito pequenos para entender tudo isso. Esta carta aberta é para o futuro. Há alguns anos, papai passou por uma situação muito ruim. Enquanto trabalhava, como nas incontáveis vezes que vocês me veem no computador ou falando com muitas pessoas, fui vítima de racismo. Pois é, eu estava naquele escritório bacana que vocês conheceram, quando uma pessoa que eu mal conhecia cometeu um crime, disse coisas que não se fala por conta da cor da minha pele.

Eu poderia ter deixado o assunto passar como em outras vezes. Ou mesmo não ter reagido, mas segui meu coração e decidi entrar na justiça. Processei o agressor por injúria racial. Tomei essa decisão para dar o exemplo a vocês de que a coisa certa deve ser feita, ainda que cause desconforto. Também porque a impunidade ainda imperanesses casos.

Confesso que eu não tinha dimensão do trabalho que isso daria, nem da repercussão na mídia. Fato é que as pessoas não entendem o tamanho do problema e não há manual de instruções. Você está sozinho na maior parte do tempo. Muita gente próxima, que se dizia aliada e antirracista, mete o pé, ou pior, passa a te questionar:

“Mas tem certeza que foi um caso de racismo? Vai processar mesmo? Não tem medo de perder o emprego?”

É uma montanha-russa emocional: vergonha, medo, ansiedade, angústia. A falta de empatia e de apoio exige uma dose extra de coragem. Coragem e estômago para juntar os cacos e seguir adiante. No meu caso, foram dias juntando provas, detalhando tudo o que aconteceu em dezenas de páginas, para que o Thiago Thobias, meu advogado, tivesse argumentos e provas para explicar que sim, aconteceu injúria racial. Injúria racial é racismo. Racismo é crime.

E entrar na justiça é só o começo. Não há garantia de nada. Aliás, poucos têm a condição de pagar por um advogado, de buscar apoio, de entrar com recurso. Haja paciência. Delegacias, depoimentos, audiências, recursos, provas, mais recursos etc. Vi, em primeira pessoa, que o judiciário não é diferente da nossa sociedade. Há poucas pessoas pretas no tribunal. Usando toga então, uma minoria.

E como alguém diferente vai entender o que sinto? Além de tudo, tem que ter sorte. Porque teve gente letrada, que deveria promover a justiça, tratando racismo como “lacração”, “cancelamento”. E isso é mais um motivo para prosseguir. Sim, é preciso explicar mil vezes, relembrar os fatos, como quem fala com um alienígena ou uma criança:

_ “Não pode chamar o colega de macaco. Não pode jogar bacana no campo de futebol”

_ “Mas é só um jogo?! Qual o problema? Eu sou casado com uma mulher preta!”

Então, crianças, entendam que vocês podem ser racistas sendo pretos ou filhos de preto inclusive. Você pode usar camiseta do Tupac, ouvir Racionais, namorar um cara preto e, ainda assim, mudar de calçada ou segurar a bolsa quando vir um “mano” vindo em sua direção. Ainda que você seja a reencarnação do Martin Luther King Jr. ou da Lélia Gonzalez, se em algum momento falar “E aí negão! Quer me foder?”, o racismo está configurado.

Para deixar claro, racismo não é como uma carteira de habilitação onde você acumula pontos por infrações e, ao atingir 21 pontos, perde o direito de dirigir. Não é uma questão de “Olha lá fulano, se passar de 10 pontos você é racista”. Sua intenção, como agressor, pouco importa. A vítima é quem sente e sofre com as consequências. A opinião do espectador também não tem importância. Racismo não é um jogo de futebol nem uma eleição de condomínio.

Passados 3 anos, o processo foi finalmente julgado. E a sentença veio a nosso favor. Ainda cabe recurso. Não terminou. Apesar das alegações dos réus, das mentiras, o crime foi reconhecido. Desabei, chorei copiosamente quando recebi a notícia. É só um papel, eu sei. Não dá pra chamar de vitória porque o segurança do mercado vai continuar te seguindo. Porque quando há racismo, todo mundo perde. Já o agressor, como sempre, segue livre. O racismo ainda custa barato.

Eu posso imaginar o que vocês estão pensando: não, a vida não é justa. A verdade é que muitos aspectos que não escolhemos ao nascer influenciam como somos tratados pela sociedade: cor da pele, gênero, sotaque, classe social, entre outros. Nossa história está repleta desses exemplos. Seu avô era um homem preto, filho de lavradores que trabalhavam na terra dos outros de sol a sol. Um homem de fibra e sorriso tímido, que não teve infância. Nossa luta também é para honrar a memória dele.

Dizem que a justiça tarda, mas não falha. Exceto se você for preto, pobre ou mulher. No país da pele alvo, nossa luta, meus filhos, é para a vida toda. Mas hoje, só por hoje, a gente pode respirar um pouco aliviado e dormir sabendo que a justiça se fez presente.

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