Revista Raça Brasil

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Começar do zero é privilégio, e o consumo é um novo campo de batalha pela equidade

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Lucio Vicente

Formado em Comunicação Social pós-graduado em Gestão de Marketing, especialista em Socioeconomia e MBA em Economia e Gestão do Agronegócio. Diretor geral do Instituto Akatu. Coautor do livro ‘O Encontro com a Sustentabilidade: Contribuições do Psicodrama’.

A ideia de que o sucesso é resultado exclusivo do esforço individual tem sido amplamente difundida, especialmente nas redes sociais, onde o discurso da meritocracia muitas vezes ignora as estruturas que moldam a vida das pessoas. Há quem defenda que basta “querer” para conseguir, como se todos partíssemos do mesmo lugar, mas a realidade é bem diferente. Enquanto alguns já nascem em contextos básicos de acesso, outros precisam vencer barreiras gigantescas apenas para chegar ao ponto de partida. No Brasil e em boa parte dos países do Sul Global, a maioria ainda luta para alcançar o nível zero, o básico, o mínimo.

Certa vez, li a frase “um peixe não sabe o que é a água”. Isso remete à ideia de que, por ele ter nascido dentro da água, não conhece outra realidade. Nós, seres humanos, muitas vezes vivemos a mesma inconsciência quando não enxergamos que aquilo que é básico para alguns é inacessível para muitos. Gosto de dizer que o acesso à água potável encanada e à energia elétrica na tomada já representa um primeiro grande abismo de privilégio. Para se ter ideia, em 2022, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) relatou que mais de 15% da população brasileira ainda vive sem coleta de esgoto.

Se já é urgente falar sobre desigualdade no ponto de partida da vida, soma-se a isso um novo dilema: o da sustentabilidade. Entramos no século XXI com uma contradição evidente. Milhões de pessoas ainda nem sequer passaram a ter acesso ao mercado de consumo, enquanto a humanidade já vive o desafio de precisar consumir menos. A crise climática exige mudanças drásticas nos modelos de produção e nos padrões de consumo. No entanto, aqueles que tiveram acesso a esse consumo ilimitado por décadas agora pressionam para que outros freiem o consumo antes mesmo de terem usufruído de seus benefícios mais básicos.

A entrada de novas populações na classe média global, impulsionada pelo crescimento econômico de países emergentes, é um sinal positivo de avanço social. No entanto, esse movimento vem acompanhado de um risco considerável: se o modelo for o mesmo adotado pelos países desenvolvidos, os impactos ambientais serão insustentáveis. Como lidar com o conflito entre a necessidade de reduzir a pegada ecológica global e, ao mesmo tempo, garantir que bilhões de pessoas ainda em luta pelo básico tenham acesso a uma vida digna?

A alimentação é um dos pontos mais sensíveis desse impasse. Segundo o IBGE (2023), mais de 27% dos domicílios brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar, o que significa que milhões não sabem se terão o que comer amanhã. Paralelamente, debates internacionais giram em torno da redução do desperdício de alimentos e do consumo excessivo. Seria justo exigir moderação de quem sequer atingiu a dignidade alimentar?

É necessário reconhecer que o acesso ao consumo é um indicador de desigualdade tão importante quanto a renda ou a moradia. O grande desafio que temos pela frente é construir um novo modelo, no qual o acesso ao essencial seja ampliado, enquanto o excesso seja progressivamente reduzido. O problema nunca foi consumir, mas sim consumir sem responsabilidade, sem consciência e sem limites.

Como aponta a filósofa Djamila Ribeiro, reconhecer privilégios é o primeiro passo para combater as desigualdades. Essa lógica se repete no consumo: não é apenas o que consumimos que importa, mas também como e por que consumimos, além de quem pode consumir com dignidade e quem sequer chegou a esse ponto.

Enquanto países do Norte Global tentam corrigir os erros de seus próprios modelos de desenvolvimento, pressionando por metas de redução de emissões e de consumo, muitos países do Sul Global ainda precisam garantir o mínimo a seus cidadãos. O mérito só pode existir onde há equidade. E o consumo consciente só pode ser uma realidade onde há dignidade.

O futuro sustentável do planeta depende de uma reconciliação urgente entre justiça social e justiça climática. A solução não está em barrar o acesso ao consumo, mas em redefinir o que, de fato, deve ser consumido, com responsabilidade, e para quem. Sem justiça social, o consumo consciente será apenas mais um privilégio disfarçado de escolha.

 

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