Revista Raça Brasil

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Conceição Evaristo celebra a força das mulheres negras e diz: ‘Escrever é resistir

A voz de Conceição Evaristo carrega a doçura de quem aprendeu cedo que escrever é mais do que registrar — é existir. Aos 78 anos, a autora mineira segue entre livros, viagens e homenagens, provando que o tempo não apaga o brilho de quem escreve com alma.

Enquanto trabalha em seu novo livro, Em Nome de Mãe, ela fala com ternura sobre a mulher que lhe ensinou tudo. “Minha mãe criou nove filhos. Esse livro é um tributo a ela, e a todas as mulheres negras que cuidam, sustentam e educam — mesmo quando o mundo lhes nega quase tudo”, diz.

A obra celebra a maternagem como força ancestral. Não apenas o ato biológico, mas o gesto de amparar. “A maternagem não é só parir. É cuidar. As mães de santo, por exemplo, cuidam de toda uma comunidade. Isso também é maternagem”, explica.

A escrevivência como herança

Filha de uma lavadeira e de um pedreiro, Conceição cresceu cercada de histórias, não de livros. E foi dessas vivências que nasceu seu conceito mais conhecido: a escrevivência — o ato de escrever a própria vida, a própria memória e o próprio povo.

“Escrever é se ver. É não deixar que outros contem por nós aquilo que é nosso”, diz.

De Olhos d’água a Ponciá Vicêncio, sua literatura é feita de verdades nuas, da vida cotidiana transformada em poesia. É dor e beleza convivendo no mesmo parágrafo — como no Brasil real que ela descreve.

Entre portas abertas e espaços a conquistar

Em 2018, quando concorreu à Academia Brasileira de Letras, Conceição sabia que não se tratava apenas de uma vaga. Era um gesto simbólico. “Não fui eleita, mas abri portas. O importante não é ser a primeira, e sim abrir caminhos para que outras cheguem.”

Seis anos depois, ela se tornou a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Mineira de Letras — um feito inédito em 115 anos de história.

Mas Conceição não se contenta com o pioneirismo isolado. “Não quero ser enfeite. Quero que a representatividade se traduza em mudança real. Ainda há uma maioria branca ocupando o poder. Precisamos de paridade, em todos os lugares.”

Literatura que cura feridas

Com mais de meio milhão de exemplares vendidos, sua escrita atravessa fronteiras e consciências. Conceição acredita no poder curativo das palavras.

“Quando pessoas brancas leem nossas histórias e dizem: ‘eu nunca tinha pensado nisso’, é porque a literatura está fazendo o que deve — provocar, conscientizar e curar”, afirma.

Para Julio Ludemir, curador da Flup (Festa Literária das Periferias), Conceição é “um Jorge Amado de saias”. “Ela escreve com universalidade, mas sem perder o olhar de quem veio da margem. Por isso emociona tanta gente”, diz.

Da periferia ao mundo

Em outubro, a Flup levou sua obra a Berlim, com leituras e performances em sua homenagem. Conceição sorri ao lembrar da emoção do público estrangeiro. “A Flup mostra que a literatura da periferia também é arte. Democratiza o livro e dá voz a quem foi silenciado por séculos.”

Durante o evento, ela também fez um apelo à Europa por um acerto de contas com o passado colonial. “O racismo nasce, em grande parte, da colonização. A Europa precisa olhar para sua história com honestidade. É o primeiro passo para entender o outro.”

“O Brasil se tornou menos cínico”

Questionada sobre o racismo no país, Conceição é firme, sem perder a esperança.

“Não dá pra dizer que o Brasil está menos racista. Mas é, sim, um país menos cínico. Antes, se fingia que o problema não existia. Hoje, ele é debatido — e isso já é um avanço.”

Ela acredita que nomear as feridas é o começo da cura. “Quando a gente fala sobre o racismo, rompe o silêncio que sempre protegeu a desigualdade.”

E faz um alerta: “O termo ‘racismo estrutural’ não deve ser usado como desculpa. Estruturas são feitas por pessoas — e pessoas podem mudá-las.”

Nossos passos vêm de longe

Conceição gosta de lembrar que sua trajetória não é solitária. “Tudo o que eu conquistei vem da força de quem veio antes. Nossos passos vêm de longe”, repete, citando Jurema Werneck.

A escritora continua inspirando gerações — com sua fala mansa, olhar acolhedor e firmeza de quem carrega o peso da história e a leveza da esperança.

Mais do que uma autora premiada, ela é um símbolo de resistência viva.

“Escrever é resistir. E resistir é uma forma de amor”, diz.

E talvez seja isso que faz de Conceição Evaristo uma das vozes mais bonitas do nosso tempo: ela nos ensina que a palavra pode ser ferida, mas também pode ser cura.

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